Luís Cristóvão

Foi assim que o vivi

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Bom dia, vencedores do título europeu. Falo para a enorme massa adepta que festeja um feito único, inigualável, não porque não possa vir a acontecer, mas porque foi o primeiro. Escrevo-vos para dizer como foi difícil o dia de ontem, como me custou ultrapassar tudo, como uma imensa névoa me fez confundir os pensamentos. Não foram 37 anos de vida à espera de algo deste género, nada disso. Foram mais de cem anos de história do futebol a entregar a sensação da vitória ao nosso lado.

A confiança sentida desde que ficámos em terceiro lugar foi vivida ao longo de semanas sem grande pressão, muito bem resumida naquele “se perdermos que se foda” do nosso capitão”. O pior foi mesmo chegar ao dia da final e perceber que tudo aquilo era possível. Jogar uma final num contexto perfeito para sermos campeões. E lá estão os mais de cem anos de história. A colocar-nos a jogar fora de casa, mas num território onde ser português é, também um estado de alma. Ter no relvado uma das equipas que mais vezes nos travou o sonho. Sentir que não éramos favoritos, nem nada que se parecesse, que de todos os lados vinham vozes que davam o título aos franceses. Encontrar, no grupo de jogadores que representaram a nossa seleção, a mescla ideal de experiência, liderança e rebeldia que nos transforma perante os grandes momentos.

Quando o jogo começou, vi a nossa equipa a cometer aqueles erros normais dos jogos de ansiedade. Passes falhados, dificuldades para entrar no jogo, perante uma França que também jogava com brasas debaixo dos pés. Um passe longo do Cédric foi encontrar o Nani para o primeiro lance de perigo do jogo e demos o mote. Do outro lado tinham que ter em conta que a vitória não eram favas contadas. Foi também por perceberem isso que os franceses entraram sempre à bola como quem invadia um país estrangeiro. Numa dessas entradas, Payet provocou a rotura do ligamento do joelho esquerdo do Cristiano Ronaldo e ver o capitão deitado no chão, em lágrimas, foi talvez um dos momentos mais marcantes de todas as histórias dos Europeus. Um dos maiores a chorar, não por ter perdido, mas por não poder ficar a lutar juntos do seus pela vitória.

No entanto, a lesão de Cristiano Ronaldo acabou por, durante a primeira parte, ferir mais a seleção francesa do que a portuguesa. A França ficou sem plano defensivo, subia para tentar pressionar a bola na saída para o ataque dos lusos, mas não sabia com que contar das movimentações de Quaresma, Nani e João Mário, agora soltos de referências. O jogo foi feio ao intervalo, mas Portugal jogava o que tinha de jogar. O contexto era agora ainda mais complexo do que esperado, sendo que baixar o ritmo da partida e apostar tudo no erro do adversário passava a ser mesmo o plano para a vitória. Na segunda parte, vimos mais França a aproximar-se da nossa área, nunca com uma ideia de jogo muito definida, mas sempre à procura das suas individualidades. Portugal não se desposicionava, mas também não o fazia o conjunto gaulês, que nunca pediu a Sagna ou Evra que se lançassem excessivamente no momento ofensivo. Nenhuma das equipas queria perder.

Enorme Rui Patrício a dar sempre segurança à equipa portuguesa, onde Pepe e José Fonte raramente davam espaço aos avançados franceses, William Carvalho e Adrien Silva a povoar o território de Antoine Griezmann e depois João Mário, sobretudo ele, a tentar pensar o jogo quando Portugal tinha a bola. No final dos noventa minutos, ainda vimos o Gignac a fazer tremer os ferros da baliza portuguesa, mas isso já era o mito a acrescentar episódios de um excesso dramático que o humano não consegue aguentar. Antes disso, Fernando Santos tinha tomado a decisão de querer ganhar o jogo, tendo aí demonstrado que é muito mais ambicioso do que Didier Deschamps, que nunca soube bem o que fazer à sua equipa a não ser refrescar quem lhe parecia desgastado.

Fernando Santos chamou Éder. O “patinho feio”, o rapaz que ninguém queria na seleção, o pior jogador do mundo. Chamem-lhe tudo o que quiserem. Éder tem o benefício de ter sido sempre um jogador que soube conquistar o respeito dos seus treinadores. E ontem o jogo pedia alguma dimensão física para disputar as bolas que chegavam, pelo ar, ao meio-campo francês. O jogo pedia Éder e Éder mostrou ser muito mais do que aquilo que lhe conhecíamos. Para além do lutador por todas as bolas, as possíveis e as impossíveis, transformou-se também em parte da história do futebol nacional.

Eu já não estava em mim, a essa hora, a andar de um lado para o outro na redação da Eurosport. O coração já não deixava nenhuma perspetiva de racionalidade entender o que estava ali a acontecer. Sim, parecia tudo tão possível, como nunca, mas também sabíamos que o futebol não vive das suas possibilidades mas, sim, das suas impossibilidades. Um carro apitou lá fora, andava a bola pelo meio-campo. Momento de estupefacção. Vai ser o Éder? O camisola 9 ganhou espaço perante os centrais franceses e rematou para o golo. O golo. O golo. O golo. A partir daquele momento, o golo vai ser sempre o golo do Éder. Sem outro igual.

O resto foi uma espécie de confusão de sensações que se prolongou pela noite toda, até esta manhã, onde ainda parece ser pouco credível entender que vivemos uma coisa que não dá para explicar. Uma história de filme. Uma história de vida. Uma história de futebol.

Bom dia, vencedores do título europeu. Acho que é isto que se chama ser feliz.

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