Luís Cristóvão

Futebol humano no Atlético Paranaense

Anúncios

A equipa de Curitiba tem estado sob o foco da atenção pela sua forma de jogar. Fernando Diniz encontrou finalmente uma oportunidade para treinar ao mais alto nível, no Brasil, e rapidamente demonstrou as suas qualidades, aproveitando o início da temporada para, enquanto utilizava jogadores mais jovens no Estadual, preparar a sua equipa profissional para atacar objetivos no Brasileirão, na Copa do Brasil e na Copa Sul-Americana.

Foi uma gigantesca mudança na face do Atlético Paranaense que, ainda há pouco tempo, tinha contratado Fabiano Soares para treinador principal. A mudança operou-se a todos os níveis, com a chegada de um treinador com ideias bem sólidas quanto às necessidades estéticas do jogo e da base de um entendimento do futebol que vai bem para lá do resultado. Garantido o campeonato estadual, a equipa mantém em aberto os seus objetivos em todas as competições, isto apesar de ter vencido apenas um jogo da Série A e ter sofrido a primeira derrota da temporada no passado fim-de-semana.

Mas o trabalho de Fernando Diniz vai muito além disso. É uma mudança profunda na forma de ver o jogo e os jogadores o que potencia este técnico de 44 anos que, enquanto jogador, teve oportunidade de passar por uma série de grandes clubes, como o Palmeiras, o Corinthians, o Fluminense, o Flamengo, o Cruzeiro e o Santos.

Humanização e empoderamento do atleta

O jogador é tratado como um robô, como uma coisa qualquer. Eu vi muito isso durante meus anos como atleta. […] Era visto como uma pessoa menor. E esse tipo de distorção sempre me incomodou, me marcava muito. E eu sei que isso continua acontecendo. Não acho que seja a maneira mais correta de conduzir um time de futebol. As pessoas precisam ser respeitadas, você tem que procurar facilitar para que as pessoas se encontrem e sintam prazer de estar ali naquele ambiente. 

Tem sido um tema a que volto recorrentemente nas minhas análises, mas o conhecimento que a equipa técnica tem do jogador é fundamental para poder elaborar o seu modelo em condições. Não se trata de uma visão encurtada sobre a conversa entre treinador com modelo e treinador que se adapta ao contexto. O futebol, nos nossos dias, vai muito além disso. Trata-se, sobretudo, de entender o modelo como uma vertente produtiva que assenta no elemento humano que o pode desenvolver.

A ideia do jogador enquanto uma máquina que corresponde apenas a estímulos e apresenta respostas previsíveis não é uma leitura aceitável dos avanços científicos e tecnológicos que temos hoje. A presença da ciência no jogo tem, pelo contrário, tentado aprofundar o conhecimento do humanismo nas relações dentro do mesmo. Entender com exatidão as capacidades de cada um, a cada momento, é entender esse respeito como base para a construção de uma nova ideia.

Tive muitas conversas com meus atletas, de saber o que incomoda neles, tentar entender porque aquela pessoa é daquele jeito, tentar entender o passado que eles trazem, como foi a construção existencial de cada um… Às vezes as pessoas enxergam aquele pedacinho, mas ele é só a ponta do iceberg. Mas ninguém quer saber do todo. […] existem muito mais coisas por trás. E no futebol as pessoas não costumam valorizar isso. Se dá muita importância à parte tática, e eu valorizo isso, trabalho de forma exaustiva o que quero jogar, fase de construção, é só ver os jogos dos meus times, mas ali por trás tem pessoas. É um todo e uma construção constante de vários aspectos. Temos caminhos ainda pouco percorridos no futebol. É preciso ter coragem. 

A questão da coragem para inovar parece estar, nos nossos dias, no centro da discussão entre treinadores. Porque, a meu ver, estamos num momento em que começam a sobrepor-se experiências muito diferentes, no mesmo campo, o que me leva a vê-lo como uma oportunidade e não como uma dramatização. Fernando Diniz consegue estar com um pé nos dois mundos. Por um lado, o Atlético Paranaense é, neste momento, uma equipa que se pretende destacar em termos táticos, pelas suas opções de treino e jogo. Mas, por outro, este técnico tem perfeito entendimento daquilo que tem a fazer para que essa realidade se materialize.

Um determinado entendimento de profissionalismo levou a que se pensasse que o atleta é uma figura totalmente disponível para tudo o que lhe for exigido e, ser profissional, é algo bem diferente disso. A relação que se estabelece entre administração, treinador e jogador deve ser uma de suporte comum, de apoio nas decisões e de compreensão do papel de cada um para conseguir alcançar os objetivos determinados. Nesse ponto, a coragem de Fernando Diniz é a de empoderar o atleta, conhecendo-o e reconhecendo-o como um todo (homem e jogador), para que este participe de forma ativa no processo.

Muito mais que futebol: vocação e capacitação

Eu acredito muito em vocação. E a pessoa precisa disso para trabalhar no futebol. Tem gente que nunca jogou futebol, mas tem sensibilidade para ser treinador. Consegue ter uma percepção diferente, entender os jogadores… Eu tive a sorte de ter trabalhado, principalmente na base, com gente que aprendi muita coisa. E a grande parte dessas pessoas nunca tinha jogado futebol profissionalmente. Evolui pra caramba com esses caras! […] Acho que existe espaço para todo mundo. Existe preconceito de ambas as partes e isso não pode existir. Acima de tudo o futebol precisa de gente bem preparada. Que tenha vocação, mas que também se capacite para isso. E vale para qualquer função no futebol. Estudar todo mundo tem que estudar, não tem jeito. Estou percebendo que os ex-jogadores estão buscando isso de uns tempos para cá. E tem essa galera que vem da academia, que estuda bastante, que mostram bons trabalhos… É aliar o conhecimento de todos para um bem maior. 

Como qualquer atividade humana nos nossos dias, a valorização do aspeto sócio-comunitário acima do conhecimento específico englobou o futebol. O técnico não é um especialista em futebol, tal como a especialização tem, numa fase da evolução humana de interconexão de conhecimentos, sempre uma vertente que exclui partes importantes do seu trabalho. Fernando Diniz compreende bem a essência do jogo e a necessidade existente de se completar com essência de vida.

A forma de jogar do Atlético Paranaense expõe isso mesmo. Por um lado, buscando a vocação dos seus jogadores, os seus sonhos, as suas aspirações, o seu prazer a jogar à bola. Por outro, capacitando-os com o trabalho tático realizado, dando-lhe noções de coletivo, organização na posse de bola, eliminando erros de posicionamento no momento da perda e na organização defensiva. Ao mesmo tempo, entendendo como essencial que a participação do atleta em todo esse processo se faça pela via do prazer, da aceitação, da cooperação, e não como uma imposição de alguém que sabe mais do que os outros.

Daí o sublinhar desta união entre o treinador que nasce de dentro do futebol, antigo jogador, intuitivo e conhecedor de uma realidade interna da sua própria experiência, com os diferentes técnicos que, vindos da academia, trazem novos desafios, novos conhecimentos, novas sugestões, que alimentam o crescimento da ideia de jogo, apresentam espaços de definição novos para a organização do grupo e acabam, no final, por ser tão importantes com a sua contribuição de um campo mais abstrato, como as contribuições do campo específico.

É essa a importância do estudo, como a importância da vocação, como a importância do conhecimento, como a importância da coragem. Fortalecer todos os vértices do desenho é essencial para a criação de um processo rico. E é essa riqueza que se pode ver, transformada em futebol, hoje, em Curitiba. 

 

Todas as citações de Fernando Diniz retiradas da entrevista à ESPN Brasil.

Anúncios

Anúncios