Luís Cristóvão

O aparecimento pouco original do medo

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Há muito tempo que a ideia de trazer um pouco de violência para o fenómeno desportivo faz parte da normalidade. Começa muito cedo, nos primeiros anos de formação dos jovens, com um pai ou um treinador que consideram que o discurso deve ser mais duro, que se deve gritar para os “acordar”. Passa, depois, por se achar que tudo o que não sejam vitórias largas são “injustiças” para as próprias cores, procurando culpados naquilo que é só um jogo. Acaba por se estar completamente contaminado por este discurso, desde a administração dos clubes, aos treinadores, aos jogadores, aos adeptos. Acaba com um “temos que nos habituar” a ver criminosos invadir centros de treino e balneários. Mas não temos.

Estamos infelizmente habituados a viver o fenómeno desportivo como um ato de leves repetições de violência. Quem é que nunca se sentiu incomodado com os gritos azedos de um familiar num jogo entre crianças ou adolescentes? Quem é que não percebeu que, por meio dos apupos num qualquer jogo, alguém ultrapassava os limites do aceitável? Todos já vivemos isso.

No entanto, isso não é o normal. Não é normal ver jovens incomodados porque, no jogo que amam jogar, alguém aparece para se impor como o “bullyzinho” de sentinela. Não é normal que um árbitro ou um adversário sejam tratados para lá de qualquer sentido de educação aceitável. Não é normal que as pessoas se transfigurem tão negativamente no momento em que começa a bola a rolar em algum espaço desportivo pelo país fora.

E, como não é normal, a contaminação destas pequenas violências para as grandes estruturas deveria ser travada a tempo. Pelo contrário, do pequeno se passou ao grande e foi encontrada aí a oportunidade para introduzir o discurso do medo dentro dos principais meios de informação. Por isso mesmo, do “aperta com eles” generalizado, se passou para as “forças de manipulação” organizadas. Por isso mesmo se passou a citar erros de árbitros com frases como “resistiu-se à inevitável tentação de partir para a violência”. Por isso mesmo houve ameaças, tentativas de agressão, inclusive, mortes, entre supostos adeptos. Por isso mesmo se chegou ao “foi chato, mas temos que nos habituar”. Não temos.

Transformar o mundo, pacifismo enquanto ato de força

Assisti a um ataque que nunca vai ser possível descrever! Ninguém tem noção do que aconteceu e não admito que brinquem com a vida ou com o ataque bárbaro que vivemos. Estamos assustados, tristes, desiludidos e com medo! Respeitem quem passou momentos de aflição, terror e ver as suas vidas postas em causa! Nós fomos trabalhar e fazer o que melhor sabemos para que no domingo terminássemos em beleza esta época! Isto é uma vergonha.

Márcio Sampaio, preparador físico do Sporting, nas redes sociais

Alguém pode ficar impassível perante este testemunho? É que, de repente, deixamos de estar a falar em ameaças a anónimos ou a pessoas que desenvolvem a sua atividade profissional para o “suposto inimigo”. As queixas desses caíram em saco roto porque se estavam a “meter” onde não eram chamados. No entanto, o discurso do medo instalou-se dentro do próprio clube. A conversa e os desacatos passaram a ser entre “adeptos” e funcionários do próprio clube. Atacaram-se treinadores e jogadores, aqueles que, pelas suas funções, estão mais perto de fazer sonhar quem gosta de futebol.

E chegou-se a este ponto porque reagir era ser fraco. Querer falar de futebol e não das polémicas em volta era “fechar os olhos”. Ser pela pacificação das relações no mundo desportivo era “ceder à manipulação”. Tentar trazer um discurso sobre a transformação do jogo era “medíocre”. Quando era exatamente o contrário.

As instituições desportivas devem dedicar-se ao desporto, impondo-o como um exemplo positivo e pacifista de relacionamento entre pessoas de diferentes estratos, nacionalidades, religiões. Não é uma via normalizadora, é uma via unificadora em redor de uma experiência de competição saudável. O discurso do pacifismo é, neste quadro, um discurso, não só necessário, mas um discurso de coragem. E o desejar do futebol pelo futebol é o único ato de força que nos resta para destruir o avanço do medo.

Essa coragem que também faltou, diga-se, na intervenção do governo que, para além de passar algumas informações sobre o número de detidos e o trabalho das forças de segurança (ao que parece, inexcedível na forma rápida como reagiu), se perdeu em considerações vagas sobre a “festa do futebol” e o “jogo de domingo”, quando aquilo que se pretendia era um discurso forte sobre a não aceitação de todo um rol de comportamentos nas organizações que se envolvem no desporto.

Por isso mesmo, não me parece que faça qualquer sentido falar de cores neste contexto. Não é por cores que se divide o estar, de forma clara e decidida, na luta contra o que aconteceu ontem. Caíram todos no ridículo até onde se pode ir na ideia de que a violência leve (a piada, o apupo, a ameaçazinha) não faz mal a ninguém. Faz. Cresce e desenvolve-se até permitir que uns cinquenta criminosos tentem ajustar contas pelos muitos milhões de adeptos que eles não representam, nunca representarão, e desejam exatamente o contrário. Ver a bola, passar um bom bocado, seguir com a sua vida.

Ah o medo vai ter tudo 
tudo 

(Penso no que o medo vai ter 
e tenho medo 
que é justamente 
o que o medo quer) 

O medo vai ter tudo 
quase tudo 
e cada um por seu caminho 
havemos todos de chegar 
quase todos 
a ratos 

Sim 
a ratos 

Alexandre O’Neill, O Poema pouco original do Medo

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