Apesar das evidências que levam a concluir que a capacidade de projetar o futuro é uma das armas para a competitividade no futebol de alta competição dos nossos tempos, na Liga Portuguesa, a posição do treinador é sempre um projeto de curto prazo.
As competências do treinador são, num quadro de exigência alta, a forma de encontrar resposta para se impor um pensamento divergente no seio do futebol nacional.
Olhando para o Programa Nacional de Formação de Treinadores – Grau IV, confrontamos as competências que devem estar consolidadas na figura do treinador que completa o licenciamento para ser responsável por uma equipa de futebol profissional
Saber/Conhecimento
O Treinador de Grau IV tem conhecimentos:
* acerca da estrutura do sistema desportivo em que se insere e das políticas desportivas vigentes e perspectiváveis.
* acerca da concepção, coordenação, implementação e avaliação de programas de formação desportiva em contextos diferenciados e plurais de prática.
* acerca de concepção, coordenação, implementação e avaliação de programas avançados de prospecção de talentos e de avaliação e controlo do treino e da capacidade de rendimento desportivo do praticante e da equipa.
* transdisciplinares que emergem e concorrem para uma formação auto-regulada.
* aprofundados acerca da implementação de programas de formação de treinadores e acerca do respectivo processo de controlo de qualidade.
* acerca dos processos de produção científica, inovação e empreendedorismo
No que toca aos conhecimentos que um Treinador de Grau IV deve atingir, apontam-se diferentes caminhos que, de certa forma, o colocam ao nível de alguém altamente especializado para realizar uma tarefa de liderança e enquadramento num quadro de alta competição. O reconhecimento do sistema desportivo onde está inserido implica um profundo estudo de diferentes realidades da alta competição, conforme os diferentes níveis que as principais ligas mundiais detém, o que acresce da sua capacidade para coordenar projetos, quer ao nível formativo, quer ao nível da avaliação de talentos, quer ao nível do treino.
Esta realidade aponta para uma figura do treinador com uma larga experiência no terreno, exposto a diferentes realidades e desafios, capaz de dar resposta perante a novidade constante que se reveste numa competição de grande exigência. Sendo certo que, nos dias de hoje, o foco no discurso do treinador aponta para um sentido bem mais limitado – a preocupação com o modelo de jogo preferido parece superar, largamente, o entendimento que pode ter para aplicar um processo de desenvolvimento dessas ideias -, não deixa de ser algo surpreendente que se consiga ter em equipas de alto nível, no topo da Liga Portuguesa, com tão poucos jogos disputados no cargo, incluindo técnicos que se estrearam como treinadores de um dos quatro maiores clubes portugueses sem nenhum jogo disputado, anteriormente, numa primeira divisão.
Depois, o entendimento do treinador como um especialista requer a sua capacidade para pensar para lá da função direta que detém na equipa de futebol. Conhecimentos transdisciplinares que fomentem uma auto-formação (vejam o caso de Pep Guardiola e o caminho que fez até se tornar treinador, tentando substituir parte da lacuna de não ter mais experiência de campo na função), a a capacidade para intervir na formação de outros treinadores (a liderança de uma equipa técnica implica esse tipo de pensamento, já que reúne diferentes profissionais e especialistas e necessita de uma liderança clara no que toca a objetivos de cada um) e, finalmente, uma ideia de inovação e criatividade que nunca pode estar separada de um lato conhecimento sobre o tema. Ou seja, a formação reduz o espaço à ideia do treinador-génio e fomenta a ideia de um treinador-especialista.
Saber Fazer
O Treinador de Grau IV é capaz de:
* aconselhar o desenvolvimento e implementação de políticas desportivas.
* promover o desenvolvimento de pensamento crítico.
interpretar e integrar estrategicamente politicas desportivas na macroestrutura em que se insere.
* conceber e coordenar programas de formação desportiva.
desenvolver e coordenar programas avançados de prospecção de talentos e de avaliação e controlo do treino e da capacidade de rendimento desportivo do praticante e da equipa.
* liderar estruturas desportivas que envolvem actividade transdisciplinar.
* diagnosticar necessidades de formação de treinadores e conceber, coordenar e participar em programas de intervenção em qualquer dos graus de formação.
* monitorizar e assegurar o controlo da qualidade de todas as actividades desenvolvidas no espaço das suas atribuições profissionais.
* promover a inovação, o empreendedorismo e a investigação no quadro de todas as funções que desempenha.
A necessidade de ter, numa organização desportiva, vários treinadores com o grau máximo de formação, explica-se pela capacidade que a estes é exigida no seu percurso formativo (e, também por isso, o PNFT implica um processo contínuo de formação ao longo da carreira. A capacidade para aplicar e gerir políticas desportivas, alimentar o pensamento crítico, conceber programas de formação e desenvolver todos os aspetos ligados à componente desportiva de uma estrutura são trabalho para treinadores com formação. A esses elementos liga-se uma capacidade de diagnóstico sobre as situações, a monitorização e a inovação dentro do quadro de uma equipa técnica.
Para muitos, o que é uma questão teórica, parece difícil de ser transposta para a realidade. Mas a aplicação destes princípios prende-se, na maior parte das vezes, com aspetos muito práticos do trabalho diário de um treinador e de uma equipa técnica. O primeiro passo está mesmo ligado à formação dessa equipa. Quem a integra e porque a integra, e que tipo de diálogo é gerado pelos seus elementos. Daquilo que podemos observar, as tendências separam-se entre o treinador-líder que convoca para a sua equipa coadjuvantes da sua ideia (controlo) e o treinador-equipa que distribui funções e absorve os resultados destas para o bem comum (coletivização).
A experiência de jogador pode acrescentar muito à forma como estes dados são concretizados e é por isso mesmo que os jogadores internacionais e de alta competição têm, repetidamente, acesso promovido aos principais cursos de formação. No entanto, a experiência de jogador acrescenta, mas não substitui. Sendo certo que esse reconhecimento da realidade de campo enquanto jogador é altamente valorizada no momento de entrada numa equipa, a mesma acabará por se esboroar nas semanas de trabalho de seguintes caso as expetativas não sejam alimentadas com dados concretos da sua capacidade para vestir a pele das funções que agora detém.
Saber Ser
O Treinador de Grau IV:
* valoriza o desporto enquanto instrumento de desenvolvimento humano, integrando as suas determinantes económicas, políticas e socioculturais.
* assume pensamento crítico e estratégico face aos constrangimentos particulares impostos pelos contextos diversificados de prática desportiva.
* assume atitudes críticas acerca das políticas de desenvolvimento desportivo relevantes para o seu contexto de prática profissional.
valoriza a adopção de lideranças participativas baseadas na cooperação e na optimização de recursos humanos, materiais e organizacionais.
* valoriza a qualificação dos processos de formação – de certificação de grau (curricular e em exercício) e a formação contínua ao longo da vida -no contexto da sua actividade profissional.
* valoriza a promoção e integração da inovação e do conhecimento e desenvolvimento tecnológico emergentes da investigação científica em todas as actividades adstritas à sua função.
Pensamento e atitude crítica, capacidade de cooperação e optimização de recursos, valorização dos processos de formação e de inovação – é isto o que se espera que seja o treinador de Grau IV. Para o observador externo, cabe o trabalho de análise destes princípios naquilo que é o desenvolvido pelos treinadores que assumem funções de liderança nas equipas da alta competição em Portugal. Uma questão parece saltar à vista no que é o discurso dominante no futebol nacional. O desejo que se fale de futebol, por parte dos seus agentes, muito poucas vezes é alimentado pelos mesmos. Frases como “é opção” ou “não vou revelar o que fazemos” transformam o campo de discussão, como se a liderança de uma equipa técnica envolvesse segredos de impossíveis acesso.
Ora, a realidade aponta para um caso bem diferente. O estudo tático das equipas é feito de forma aprofundada e raramente vemos casos, na nossa Liga, de equipas surpreendidas por opções dos seus rivais. O conhecimento dos jogadores também é de tal forma alargado que muito dificilmente um atleta com mais de duas a três semanas em competição em Portugal não seja totalmente reconhecido nas suas características. Se alinharmos pela questão do treino, exercícios e teorias de treino são, nos dias de hoje, maioritariamente semelhantes entre os principais elementos das respetivas equipas. Não há propriamente segredo, mas sim alguma incapacidade de desenvolver o capítulo do “Ser” nas lideranças técnicas.
A segurança no projeto, no plano e no modelo a implementar nas respetivas equipas tem muito pouco que ver com a ideia de certezas na assunção dos mesmos. O treinador que mais evolui não é aquele que se agarra mais às certezas do início do caminho, mas o que é capaz de desenvolver as melhores questões e as discute com maior abertura para, na sua resolução, atingir degraus seguintes de conhecimento, de saber e de capacidade de realização. Podem, desta forma, as experiências passadas ter uma forte influência naquilo que um treinador é. Mas percebe-se, na análise do quadro de competências que um treinador deve ter, que mais importante do que aquilo que foi, é aquilo que ainda conseguirá vir a ser.
One thought on “Competência do treinador; teoria e realidade”