Luís Cristóvão

Mito, Messi e o fim de Setiénismo em Barcelona

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Quique Setién cumpriu o seu sonho de treinar o FC Barcelona e Lionel Messi. Mas o ponto alto da carreira do técnico de Santander pode também confundir-se com o fim da identificação da sua marca como própria. O universo barcelonista continua a alimentar um mito que poderá bem transformar a passagem de Setién no fim do Setiénismo. 

Os treinadores-mito do universo barcelonista

No dia em que a análise deixou de ser resultadista, ser um treinador mítico ficou bastante mais complicado. Para a generalidade dos adeptos, esse tempo ainda não chegou. Um título é um título, ganhar é sempre melhor que perder e, obviamente, a maioria de quem acompanha um clube de futebol fá-lo para que os seus sejam vencedores. Mas, para clubes como o FC Barcelona, que construíram a sua identidade recente à volta de uma ideia de jogo que se uniu a resultados para transformar Johan Cruyff e Pep Guardiola em dois mitos inquestionáveis do evangelho barcelonista, ganhar sabe a pouco (sobretudo quando não se ganha tudo). 

A saída de Ernesto Valverde fez-se também pela análise dos resultados – a equipa vinha-se apresentando frágil nos momentos decisivos na Europa, na Taça do Rei, na Supercopa -, mas sobretudo pela insatisfação quanto à forma de jogar. Esta não é uma queixa estrita a este último técnico. Após a saída de Guardiola e do seu assistente Tito Vilanova, nunca nenhum outro treinador foi capaz de satisfazer o gosto “gourmet” dos barcelonistas. Gerardo Martino, que chegou com a benção de Messi, Luís Enrique, que tentou combater Messi ao chegar, e Valverde, que se apresentou como pacificador de um balneário que, ao longo destas temporadas, arriscou o esvaziamento.

A chegada de Quique Setién cumpre-se, ainda, num quadro de recusa das primeiras opções da administração do clube. Ronald Koeman tem uma cláusula de saída da seleção holandesa que não quis exercer em ano de Campeonato Europeu e Xavi, o desejado para cumprir a herança do mito Cruyff-Guardiola, nem é apoiante desta direção (a forma de despedimento de Valverde causou algum mau-estar entre figuras importantes do universo Can Barça, como Iniesta e Guardiola), nem terá excessiva pressa de chegar a um lugar onde, sabe bem, terá sempre maneira de entrar, assim se sinta preparado para assumir o desafio. Setién é uma consequência do universo barcelonista, sem nunca ter sido tocado por ele. Encantou-se com Cruyff, estudou Guardiola e, aos 61 anos, cumpre o sonho de trabalhar numa casa que sempre sentiu como sua, sem, no entanto, ser.

O fim do Setiénismo em Barcelona

O primeiro jogo de Quique Setién em Barcelona mostrou-nos o Setiénismo em potência. A prova, apenas mais uma, de que as grandes transformações de estilo são possíveis apenas com o poder de sugestão, sem grande trabalho de treino, ainda que a sua solidez precise de tempo e constância para que se fixe na forma. Este câmbio poderá ter sido facilitado pela forma como os jogadores que estavam em campo entendem os princípios pedidos pelo novo técnico, que assume a posse como prioritária em todas as situações do jogo. O impacto inicial de Setién só podia ser positivo. Frente a um Granada que não se incomodou com o facto de passar grande parte da partida em momento defensivo, o Barcelona procurou desequilibrar com uma linha de três na construção, com a largura oferecida por Fati e Alba nas alas, com o crescimento do número de opções no corredor central. A equipa conseguiu, dessa forma, um controlo total sobre o ritmo do jogo, permitindo-lhe aumentar o sucesso das recuperações de bola no meio-campo rival, a continuidade do seu momento ofensivo e o remeter o seu rival para a ausência de oportunidades de golo.

O Setiénismo também enfrentou, no entanto, alguns dos problemas que já tinham sido observados na sua passagem pelo Bétis. Em muitas ocasiões do jogo a posse de bola e o aumento expressivo do número de passes (984 contra uma média de 697.2 do Barcelona nos restantes jogos em casa desta edição de LaLiga) fez-se num regime de alguma passividade, no seu meio-campo, entre o trio da primeira fase de construção, mascarando de paciência alguma incapacidade para procurar a profundidade ou para exercer pressão dentro do bloco do Granada. O primeiro posicionamento de Messi na frente de ataque, mais perto de Griezmann, também resultou equivocado, com o argentino a precisar de maior liberdade para exercer desequilíbiros a partir de trás (o que levou à sua passagem para o flanco e, posteriormente, para uma zona mais próxima do meio-campo). E finalmente, aquilo que o comentador da Eleven Sports, João Almeida Rosa, chamou de “andebol com os pés”, numa clara limitação de movimentos demonstrados, sobretudo no primeiro tempo, sem agressividade no romper do esquema defensivo do adversário e a roçar, muitas vezes, a regra do ataque passivo (que, no andebol, existe).

O fim de Setiénismo propõem-se, assim, numa aproximação da ideia de jogo de Quique Setién à realidade do Barcelona atual. O mesmo já foi sentido, colocado em causa e trabalhado ao limite nos subsequentes trabalhos de Pep Guardiola, que percebeu, a seu tempo, que a evolução e a experimentação do seu modelo não se coadunavam com mitos e, desde que saiu do seu clube, se tem esforçado por os combater. Por agora, a lesão de Luis Suárez permitirá a Setién viver sem uma referência tão clara nas proximidades da área, mas o regresso do uruguaio será um enorme teste ao reduzido número de passes mais verticais no primeiro tempo. Depois, jogadores como Fati, Dembélé, Griezmann (na faixa), Vidal, Jordi Alba e Nélson Semedo, são hoje soluções que, em muitos casos, ajudarão a combater as qualidades defensivas de rivais em ataque organizado. Finalmente, a velocidade de execução do momento ofensivo foi claramente colocada à prova neste primeiro jogo, com Riqui Puig a surgir como uma solução para aumentar a agressividade da equipa, algo que o regresso de de Jong e o regresso à forma de Arthur Melo poderão, também, potenciar. Ou seja, o futuro possível das ideias de Setién, em Barcelona, são a sua aproximação ao mito Cruyff-Guardiola, mesclando-se nele e, dificilmente, excluindo-se do mesmo. 

O peso de Messi

Com 32 anos, Lionel Messi está ainda muito longe de deixar de ser o elemento central da narrativa barcelonista, uma espécie de transformação em jogador do mito que vive o clube. E, no dia de estreia de Setién, foi o argentino que apareceu como salvador, numa jogada enleada coletivamente pelo corredor central, rasgando a veia de organização defensiva do Granada que, até aí, parecia segura e inultrapassável. Desde a temporada de estreia de Pep Guardiola como treinador principal do FC Barcelona, quando Messi marcou 38 golos nas diferentes competições disputadas, o argentino nunca baixou das quatro dezenas de golos marcados em cada época. O seu peso específico, que para lá dos golos funciona também em assistências, na manutenção do predomínio da posse e na ameaça constante a qualquer adversário em qualquer circunstância, transformou, ao longo dos anos, a própria realidade do clube. 

Depois de Guardiola, ninguém mais treinou Messi, foi sempre Messi quem orientou os princípios pelos quais a equipa jogava. Figura incontornável do balneário catalão, é em seu redor que são construídos plantel, equipa técnica, referências para o exterior. É junto dele que os mais jovens jogadores querem estar e, de certa forma, foi associando-se a ele que os treinadores que passaram pelo clube conseguiram sobreviver. O outro dado forte para o fim do Setiénismo é a força prevalente do astro. O grande desafio que se coloca, assim, a Quique Setién não é o da responsabilidade de um renascimento de um estilo, nem a da inovação de um pensamento (à luz do estudo da criatividade, o Setiénismo não é tanto um conjunto de ferramentas inovadoras, mais uma releitura de um movimento que marcou época), mas sim o da facultação de contexto para que Messi continue a ser Messi e o Barcelona continue a ser o Barcelona. Duas missões hercúleas para quem entra numa casa para se sentar na cadeira de sonho. Vencer, como sempre por ali acontece, não será suficiente.

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