Ontem, em Guimarães e em direto, pela televisão, para o país e para o mundo, o cidadão Moussa Marega disse basta. Alvo de insultos racistas no Estádio, o jogador do FC Porto, corria o minuto 70, decidiu sair do relvado, colocando um limite no que podia aguentar. Este homem e este minuto têm que marcar um antes e um depois na discussão sobre a discriminação na sociedade portuguesa.
Uma questão de violência
A aceitação da violência como parte intrínseca da competição é o primeiro passo para o atual estado de coisas na nossa sociedade. Em lugar de uma competição salutar, desportiva, ética e igualitária, todo o discurso competitivo é construído na base do “nós contra o outro”, numa visão clubista, sectária, que menoriza, ridicula e insulta o adversário. É dentro deste quadro, visível nos estádios, nos pavilhões, um pouco por toda a sociedade, que se vai alargando o espectro da discriminação racial, sexual, de classe, como se nada fosse, como se fosse natural.
O que Marega permitiu ontem, num episódio em que o futebol sai a perder (porque um dos jogadores da partida se viu obrigado a sair de campo), foi que nada ficasse como antes. Muitos outros jogadores foram, no passado, alvo do mesmo tipo de insultos. Quase todos eles foram forçados a “engolir e calar”, não se rebelando contra a evidente falta de respeito de quem foi a um estádio apenas para soltar os seus instintos mais básicos e agressivos. Mas Moussa Marega, ao minuto 70, disse que era demais.
O racismo não chegou ontem a Portugal
Não, o racismo não chegou ontem a Portugal. Lamentavelmente faz parte mesmo de uma certa identidade nacional, numa ideia de supremacia boazinha, numa branda superioridade, que acarinha quem pretende insultar. Já todos passamos por isso, de alguma forma. Na rua, no trabalho, na escola, aquela menorização da tua ideia de forma bonitinha. Mas a situação é bem pior para os mais pobres, e bem pior para quem tem características fora da “norma”, e bem pior para as mulheres, e bem pior para as minorias.
O racismo não chegou ontem a um evento desportivo, nem chegou ontem ao futebol. Mas o problema não é o futebol. Isto não é o futebol, estúpido! É a utilização do evento de massas como um espaço de teste para um discurso cada vez mais violento na sociedade e na política. É a manipulação de sentimentos e emoções para uma normalização do racismo, do sexismo, de todo o tipo de discriminação que alimenta medos, fortalece mitos, nos divide cada vez mais.
A solução não é encontrar “um” culpado
As sociedades tendem a descansar com o encontrar de um culpado. Precisamos de um criminoso para que ele pague e nos expurgue dos pecados coletivos. A forma como no desporto português se tenta delimitar a intervenção no campo da violência apenas em determinados setores é uma forma de mascarar o problema (e a criação de uma distância para a sua resolução). A procura de culpar as claques ou de aprofundar a diferenciação entre adeptos que entram nos estádios através da criação do cartão de adepto é um sinal claro de um discurso discriminatório. A ofensa e a violência não é diferente, se praticada na bancada central ou na superior. Todos têm direitos e deveres iguais, todos devem ser responsabilizados.
Em Inglaterra, os clubes têm sido parte ativa na demarcação das situações de discriminação nos seus estádios. Na Alemanha, clubes e federação têm feito esforços no mesmo sentido. A FIFA e a UEFA têm já códigos de conduta para que os jogos, em situações como a que aconteceu ontem em Guimarães, possam ser interrompidos e o público avisado das consequências dos seus atos. E todos nós temos a responsabilidade de, se quem se senta ao nosso lado tem uma atitude de discriminação, demonstrar como ela é inaceitável.
A releitura da realidade
A atitude de Marega também ajuda a delimitar as leituras e releituras de realidade que invadem o espaço comunicacional. Os jogadores que estavam em campo dirigiram-se a Moussa Marega com a intenção de o acalmar e demover, mas nenhum o acompanhou na rejeição e saída do terreno de jogo. O treinador Sérgio Conceição demonstrou a sua solidariedade no final do jogo, mas nem ele, nem ninguém do clube, aproveitou a conferência de imprensa para reforçar a posição. O treinador do Vitória SC não se apercebeu do que aconteceu no estádio. O presidente do clube anunciou averiguações, mas alertou para “o perfil do atleta em causa”(!!). O presidente da assembleia geral do clube fez comentários numa rede social que levaram a uma evolução da posição do clube, horas depois, na condenação dos atos. Atos assumidos, em parte, no comunidade da claque vitoriana.
Durante a transmissão televisiva, a forma de abordagem dos comentadores foi divergente. Após o jogo, alguns comentadores televisivos tentaram menorizar ou duvidar dos acontecimentos (para quem esteve no estádio, para quem acompanhou o jogo na televisão, os sons eram bem evidentes). O deputado André Ventura tentou encapsular as reações dentro da sua pílula-anti-sistema-que-reforça-o-pior-do-sistema. As reações negacionistas envelheceram muito mal, umas horas depois. O Presidente da República, o Primeiro-Ministro, o Presidente da Federação, o Presidente da Liga, o Presidente do Sindicato dos Jogadores de Futebol Profissional, todos alinharam na condenação. Moussa Marega teve a coragem de fazer o que, até hoje, nenhum outro atleta tinha feito em Portugal. Agora não nos podemos esconder. Não podemos ignorar. O crime público aconteceu.
O que faremos hoje para mudar a situação?