Luís Cristóvão

Considerando a possibilidade de estarmos todos errados

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Tendo a utilizar o desporto como um medidor do mundo. É por isso que não descanso perante a possibilidade de encontrar novas dúvidas que me façam pensar. Um texto sobre repetições, insatisfações e criatividade, perante um mundo que nos prefere ver quietos.

É um exercício que se faz poucas vezes. Tento recordar-me se, no meu percurso, alguma vez passei por ele. Enquanto estudante, no movimento associativo ou partidário, nas diferentes empresas em que trabalhei (estudos de mercado, gestão livreira, comunicação). Creio nunca ter estado numa reunião onde alguém tenha colocado as coisas desta forma – “e se estivéssemos todos errados?” – apenas algumas outras formulações que se tenderam a aproximar-se. E, no entanto, creio que deveria tê-lo feito.

A involução das estruturas

Os tweets publicados pelo Filipe Santos Costa são bom exemplo disso. Relata uma experiência pessoal de trabalho que, seguramente, toca à grande maioria que o lê. A experiência profissional expõe-nos demasiadas vezes a este tipo de contextos. Espaços onde não questionamos a forma de fazer, a forma de pensar, avaliando sucessos apenas de acordo com aquilo que são expetativas criadas há demasiado tempo. Em vários mercados, este tipo de comportamento leva à falência de empresas ou ao desaparecimento da sua relevância. Num mercado pequeno, como o português, a sobrevivência é possível – arriscando-me a dizer que é quase a única forma de viver para muitos.

O que o processo de repetição gera é uma espécie de involução das estruturas. Regride-se na qualidade de realização e os níveis de exigência vão baixando paulatinamente. Na área da educação, o nível do ensino contamina-se, com menor exigência a conduzir a uma menor qualidade dos professores e a uma contínua desqualificação dos alunos. Na área da comunicação, repetem-se fórmulas estafadas sob o signo da busca de uma audiência que, na prática, é inexistente. Se muitos ainda continuam a procurar a televisão ou o jornal para encontrar informação, o último hora aconteceu sempre numa qualquer rede social onde alguém colocou a rolar o dado umas boas horas antes.

Por outro lado, esta sede de repetição também leva a uma aplicação cega de normas que nem sempre fazem sentido com os factos apresentados. Utilizo o desporto como medidor do que acontece no mundo. Na área desportiva, já vivemos por processos de liderança corrosivos, divisórios, que quebraram clubes que apresentavam uma capacidade comunitária enorme. O discurso já há muito foi contaminado pelos interesses e por uma ideologia de guerra que faz pouco sentido, ao ponto de se passar de clubismos para cegueiras táticas (como se o jogo se fizesse de caminhos de sentido único). Já vimos como as notícias falsas e as más análises geram autênticos gigantes que acabam por abafar o interesse pelo jogo e a salutar competição.

Ainda assim, por alguma razão que me escapa, a maioria habituou-se a encarar esse tipo de situações, no desporto, como aceitáveis. Não percebendo que daí saíram os balões de ensaio para fenómenos como Trump, Bolsonaro ou Ventura, não entendendo que, por exemplo, aquilo que vimos acontecer com a Festa do Avante nos últimos dois meses, transformando em factos alguma incapacidade de investigação (nunca ficou tão claro como nas redações dos órgãos de comunicação social portuguesa se ignora uma organização com quase 100 anos de história – e de como isso fere a informação, mas também mancha uma organização que teima em não se dar a conhecer), dando oxigénio mediático a um problema que acabou por não existir, dadas as condições de organização do evento.

Mas, espera lá, o que tem isto a ver com a bola?

Se vieste à procura de um texto exclusivamente futebolístico, o mais provável é que nem tenhas chegado a este parágrafo. Mas serviu a introdução para colocar determinadas coisas em perspetiva. Colocar dúvidas é uma boa forma de não adormecermos ao volante. Ou, pelo menos, de nos obrigar a pensar uma segunda vez em certas coisas que podem parecer bastante certas e arrumadas.

O início de temporada traz-me quase sempre esta sensação de que é necessário questionar certezas para encontrar novas dúvidas. Seja no mercado, na organização dos campeonatos e das equipas, seja na forma como preparo cada jogo, como estudo cada equipa, como vou formando a minha base de dados (há uma digital e outra que foi acumulando na cabeça), a partir da qual farei o meu trabalho.

O processo destas últimas semanas tem passado por repensar determinadas fórmulas desenvolvidas ao longo de épocas para, de alguma forma, chegar a cada jogo mais preparado para aquilo que ele nos propõe. Por exemplo, olhando para a forma como cada equipa se foi transmutando ao longo de meses, como cada jogador chega para o jogo, como o ambiente externo da equipa pode condicionar escolhas de treinadores. Isso é particularmente necessário numa época como a que vivemos, tendo em conta que cada equipa acabou por ter um calendário diferente, conforme a Liga onde joga e a competição europeia que disputou no mês de agosto.

No exemplo do Portugal – Croácia, existia uma clara diferença na escolha de cada onze, se analisados de um ponto-de-vista externo. Portugal colocou Anthony Lopes como titular em detrimento de Rui Patrício, devido ao nível de atividade que o guarda-redes do Lyon tem tido neste último mês, mas não seguiu o mesmo caminho na definição da dupla de centrais ou do lateral-esquerdo, com José Fonte a ficar no banco e Raphael Guerreiro a atuar quase setenta dias depois do seu último jogo oficial. Por sua vez, a Croácia apresentou um onze onde quase metade dos elementos (cinco jogadores), tinham já vários jogos disputados na presente temporada.

A abordagem do contexto através do estudo de cada tópico que pode influenciar o desfecho obriga-nos a entender determinados fenómenos de maneira muito alargada. Mas o que é especialmente complexo, seja no futebol, seja na política, seja no nosso quotidiano, é algo que Jean-Paul Sartre desenhou n’”A Náusea” com a frase “foi assim que tudo se passou, assim ou de outra forma”*. Porque apesar de conjugarmos todas as possibilidades, estamos sempre perante a eventualidade de o resultado permitir o contraditório. E se, para muitos, isso leva à ideia de que mais vale não ir muito além do “são onze contra onze e uma bola aos saltos”, eu acho que nos deve fazer mergulhar ainda mais dentro do estudo do que pode acontecer num jogo de futebol. Porque, como vos disse antes, tenho essa estranha mania de utilizar o desporto como medidor do mundo.

*citação livre, não confirmada

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