A riqueza do jogo de futebol é tal que, para que possamos continuar a compreendê-lo e a entendê-lo em profundidade, com tantas facetas de conhecimento que se envolvem no seu desenvolvimento atual, precisamos de de estar em aprendizagem e questionamento constantes.
É a constante quebra de preconceitos que, durante tantos anos, pareceram fazer lei no mundo desportivo e que, nos nossos dias, ainda insiste em fazer-se como barreira ao aprofundamento do conhecimento existente acerca do jogo. No prefácio do livro Futebol – Anatomia do Jogo, o professor Jorge Castelo explora os princípios necessários ao estudo do fenómeno.
Aprender é desconstruir o que nos foi transmitido pelas gerações anteriores, voltando-se a construir de modo mais inteligente. Desta assunção, importa teorizar constantemente a prática, designadamente através do questionamento da crença, do habitual, do usual e do corriqueiro.
Dois aspetos sobressaem nesta primeira citação. Por um lado, o entendimento da aprendizagem como uma desconstrução. Jorge Castelo não entenderá a aprendizagem como um processo de acumulação de verdades ditadas por quem ensina, mas sim como a possibilidade para reconstruir o conhecimento anterior de forma “mais inteligente”.
Por outro lado, a necessidade de “teorizar constantemente a prática”. Este parece ser o facto que mais assusta aqueles que estão na prática do jogo sem as bases suficientemente fortes para sustentar as suas experiências. Muitas das vezes, colocam aquilo que lhes aconteceu como principal argumento de defesa, não entendendo que, aquilo que nos acontece serve, apenas, como desbloqueador de uma reflexão necessária para se produzir o novo conhecimento.
A simplicidade enganadora
A aparente simplicidade que o jogo de futebol expressa conflitua com o facto de este esconder uma enorme e profunda complexidade, pois para além de uma elevada exigência cognitiva e física, é, também, vincadamente uma conduta criativa, no sentido de explorar interações num espaço e tempo oportuno.
“São apenas onze contra onze, a correr atrás de uma bola.” Muitos tentam definir desta forma um jogo que continua a produzir uma constante riqueza aos mais vários níveis. Jorge Castelo sublinha essa aparência como um engano. Aquilo que podemos encontrar ao olhar para o jogo é a sua enorme complexidade, ao nível cognitivo, físico e criativo.
Do que falamos, então, quando falamos de futebol? Falamos de um fenómeno que convoca por completo as capacidades humanas de quem o pratica, de quem o pensa, de quem o orienta e de quem o vê. Os acontecimentos do jogo influem em quem está por dentro da sua prática, tendo que agir e decidir dentro de espaços e tempos reduzidos. Quem o pensa necessita de o entender, trabalhando com quem o orienta para encontrar respostas criativas para os problemas que a prática impõe. Ao mesmo tempo, o simples ver o jogo lança questões ricas acerca da nossa natureza, porque aquilo que é, na aparência, simples, tem sempre uma natureza complexa que nos está a levar a uma aprendizagem sobre nós próprios e sobre o mundo.
Esta constatação significa que de modo nenhum se sabe o suficiente e que os novos conhecimentos se expandem de modo natural à mudança, às ideias e à inovação na criação de um mundo em constante transformação. Na atualidade, o tempo passa a uma velocidade tal que os conhecimentos do presente envelhecem, por vezes, de um instante para o outro. Logo, a utilidade da curiosidade é que esta se move nas fronteiras do conhecido desvendando o desconhecido.
Fundamental para quem está a trabalhar no estudo do jogo perceber que não há fim para o entendimento do mesmo. Isto influi, justamente, naqueles que trabalham, na prática, do jogo e do treino. A expansão do conhecimento e a mudança deve acontecer de forma natural, tal como natural deve ser o processo de desenvolvimento de uma ideia e modelo de jogo.
Os tempos atuais exigem-nos respostas e soluções quase instantâneas para o jogo. No entanto, o perfeccionismo não se coaduna com o aprofundamento destes processos. A cada resposta que encontramos, nova pergunta é colocada pela dinâmica do próprio jogo. Jorge Castelo fala de curiosidade como elemento útil neste processo de conhecimento da complexidade do jogo. Mas ser curioso não chega. É preciso arriscar sobre o nosso próprio conhecimento. Daí que adiante a necessidade de um questionamento constante sobre as bases da nossa análise. Continuar a perguntar, como modo de continuar a compreender, cada vez mais longe, cada vez melhor, o jogo que nos apaixona.
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No volume Futebol – Anatomia do Jogo, Rui Cordeiro publica uma série de estudos que abordam questões relativas à observação, à análise, ao treino, à liderança, às questões fisiológicas, à tática, ao modelo e aos momentos do jogo. Uma edição da PrimeBooks que nos ajuda a colocar várias questões ao conhecimento que detemos do jogo. Todas as citações deste artigo são retiradas do Prefácio I, da autoria do professor Jorge Castelo.