Numa grande e muito interessante entrevista ao Jornal O Jogo, Sérgio Conceição abriu as portas para as suas ideias, para o seu trabalho dentro do FC Porto, a evolução da equipa e as razões que identifica para o seu sucesso. Um autêntico guia para entrar no cérebro do treinador campeão português.
Há uma larga discussão sobre a escola de treinadores de futebol portugueses que, com o sucesso de Sérgio Conceição no FC Porto, terá mais um dado para nos dificultar unanimidades. Se se pode falar do termo escola em relação a um discurso académico e a uma investigação científica feita em vários polos do país, esse trabalho não criou uma identidade de jogo nacional. Pelo contrário, quanto mais longe se chega em termos de conhecimento sobre o treino e o jogo, quanto mais experiência se acumula, mais os exemplos de treinadores portugueses são diversos.
Acredito muito no futebol que tenha impacto físico no jogo. Gosto de uma equipa agressiva e acho que o futebol moderno tem que ver com essa intensidade e agressividade de jogo, com jogadores que tenham capacidade de ganhar mais vezes os duelos do que os perder. O jogo é feito de duelos e a equipa que ganhar mais vezes está mais próxima de vencer o jogo. Isso é convicção minha. Além da convicção, temos dados que demonstram exatamente isso. […] não é só duelo físico. Falo de duelo técnico, duelo tático.
Esta é a grande riqueza do treinador português. A sua capacidade para acumular ideias e experiências e conseguir transformá-las para encontrar o caminho para o sucesso. Sérgio Conceição foi muito claro desde o primeiro momento que chegou ao FC Porto. Olhando para os jogadores que tinha à sua disposição, montou o conceito que melhor poderia aproveitar as qualidades dos seus homens.
A abertura de mente confessada neste entrevista poderá, no entanto, ser lida por alguns como um retrocesso em relação a um certo discurso imposto como a melhor solução para o futebol. Algo a que escapa uma verdade observável em todos os estágios de evolução do jogo. Na história do futebol, nunca se caminhou de forma constante e regular para a determinação de um jogar certo. Pelo contrário, na sua natureza, está essa constante tensão entre diferentes formas de jogar o jogo, ora encontrando resposta a poente, ora encontrando resposta a nascente.
É essencial uma equipa fazer do impacto físico uma das suas principais características, mas isso só por si não ganha jogos. É preciso toda uma dinâmica que sustente essa capacidade física. E isso é preciso trabalhar. Falo de dinâmica com e sem bola.
Ao mesmo tempo, há muitas maneiras de afirmar a mesma coisa. Sérgio Conceição, pelo seu discurso, revela uma proximidade ao lado prático do jogo que percebe, à beira do relvado, a importância da unidade do jogador. Por isso mesmo sublinha o lado físico, até porque o corpo e o cérebro, as movimentações de homem e bola, todo isso é existência física no campo de jogo. Tentar deixar de lado essa realidade é um afastamento dos dados que temos para utilizar.
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Assim, parece-me que sublinhando palavras diferentes, o treinador do FC Porto está a falar exatamente daquilo que a escola de treinadores portuguesa tem vindo a trabalhar: um jogo tático, conjugando elementos técnicos e o reconhecimento do espaço, onde a intensidade é presença no relvado (e não velocidade), e o jogador transforma-se em unidade com o jogo.
Porque precisam os treinadores de falar das suas ideias
Não estou agarrado a uma ideia, a uma matriz de jogo. Não sou um treinador desse género. Funciono com o ambiente e com aquilo que tenho à disposição. […] Matriz tem sempre que ver com o grupo que temos à disposição. Temos que ir adaptando aquilo que é a equipa que encontramos no clube para metermos em campo o que nós achamos que estará mais próximo da vitória.
Só há uma forma de se conhecer os treinadores de maneira mais profunda, e essa passa por ouvi-los falar. Podemos estudar as suas equipas aos mais ínfimo pormenor dos jogos, podemos até ter a possibilidade de observar vários ciclos de treino, cotejando dessa forma a maneira como se prepara e a maneira como se alcança, mas se não tivermos os treinadores a falar e a refletir sobre todo o processo, perdemos as pontas mais importantes do mesmo, que é o entendimento que o técnico tem do todo, as suas dúvidas e as suas respostas aos desafios que encontra.
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Sérgio Conceição, na sua entrevista deste domingo, tanto afirma que não tem uma matriz de jogo, como adianta, mais à frente, que a matriz tem que ver com aquilo que encontra no clube. Talvez a palavra “matriz” soe demasiado pesada para que o treinador se reconheça nela. Mas mesmo com diferentes formas de jogar, há uma clara transversalidade nos trabalhos realizados pelo técnico nas diferentes equipas por onde passou. Ainda assim, como se percebe bem pela observação e pelas palavras de Conceição, não há uma ideia que seja mais forte do que os elementos que ele tem para utilizar em cada momento. A questão do contexto é, assim, fundamental na sua organização.
Na minha apresentação disse que ninguém ganha no grito. O grito pode funcionar num jogo, numa semana. Se esse grito não é sustentado com um trabalho em que os jogadores percebam que estão a evoluir individual e colectivamente, acho que depois, com o tempo, começam a perder aquilo que eu acho que é essencial na relação entre equipa técnica e jogadores, que é saberem que estão a trabalhar com qualidade. Trabalhamos os nossos modelos durante muito tempo, muitas horas, com grande rigor e uma disciplina enorme. […] Eu no quadro sou fortíssimo. Dizer que quero que façam isto ou aquilo é muito bonito, mas é preciso fazer ali dentro, na relva. Partiu muito do treino e do que pedíamos à equipa.
Depois, o facto de não haver um estilo definido no próprio treinador, não significa que o trabalho do técnico não seja, a partir do momento em que chega a uma equipa, começar por definir o estilo e o modelo que quer para a sua equipa. Parecem questões afastadas, algo contraditórias, mas não são. O modelo existe sempre, tal como o processo de desenvolvimento do mesmo. Pode é ser desenhado em diferentes momentos. Sérgio Conceição sublinha um dos dados mais importantes para o sucesso do mesmo, a relação de confiança entre equipa técnica e jogadores. Uma enormíssima parte do modelo vive para lá dele, para lá da explicação que o técnico possa fazer dele ou das interpretações de quem vive fora da equipa possa alcançar. O sucesso reside, exatamente, na dinâmica de confiança e capacidade de entendimento entre quem o desenha e quem o terá que executar.
Citações retiradas da entrevista de Sérgio Conceição publicada no Jornal O Jogo a 27 de maio de 2018. Um agradecimento especial ao Artur Silva (@artur_pds) pela reflexão conjunta que me permitiu ir mais além em alguns momentos deste artigo.