O futebol sempre foi território de oportunidades. O talento para o jogar abriu portas para a conquista de empregos, carreiras, estatutos, independentemente da origem social de quem o apresentava. A faculdade de o discutir tornou-se passaporte para o entendimento dos povos. O prazer de o admirar e viver deu ao mundo a possibilidade de uma experiência estética intensa que, sem o futebol, nunca poderia chegar aos mais isolados do planeta. E se, para que tudo isso acontecesse, o futebol sempre teve que ultrapassar provações que o quiseram tornar apenas ferramenta de um interesse de uns quantos, não há razão para que não o volte a fazer perante aqueles que sentem, nos nossos dias, que são os donos do jogo.
“Não interessa quem tu és, quero ver tudo a mexer o pé”
Há-os de todo o tipo, esses donos. Os que consideram que a sua equipa deve ter apenas um tom de pele. Os que consideram que para se jogar se deve respeitar um certo “deus, pátria, família”. Os que imaginam ser os donos da única razão no momento de avaliar um jogador. Os que acham que vêem coisas que nenhum outro ser tem acesso. Todos abordam o futebol com um pensamento totalitário que não tem lugar no jogo, nem na vida.
Todos acabam por fazer o mesmo caminho intelectualmente desonesto de considerar, por um lado, a sua superioridade em relação aos demais, ao mesmo tempo que, quase todos, encaram o futebol como um campo de exceção onde determinadas regras fazem um sentido que na sua vida dificilmente aceitariam. No entanto, para que o futebol seja de todos, o futebol deve ser vida. As opções éticas com que encaramos a vida devemos trazê-las para o jogo. Para que se mantenha saudável o ambiente entre os que o jogam, os que o discutem, os que o admiram.
Há comportamentos que, por tão evidentes, são mais facilmente demarcáveis. Como é que podemos tolerar a mínima sombra de racismo no jogo de futebol? Marcus Rashford, em conferência de imprensa, demonstrou o tom agastado de quem, pela enésima vez, é confrontado com insultos racistas. Sim, é verdade, já não devia ser preciso explicar que o racismo não tem lugar em momento algum da vida, muito menos num estádio de futebol. Mas também é certo que o caminho de entendimento de determinadas atitudes precisa de uma constante capacidade de resposta e de luta.
Quando um grupo de adeptos do Inter de Milan escreve uma carta aberta a Romelu Lukaku justificando ações inaceitáveis com competitividade e vontade de vencer, temos que dizer que o ganhar, no futebol, não é tudo. Muito menos se alcançado através do insulto. Já o vi acontecer em jogos de crianças, com os seus infelizes pais e mães a tentar “desestabilizar” o jogo do adversário. Começa aí, nessa ação cruel, aparentemente tão pequenina, a aceitação do insulto enquanto pensamento totalitário. Que não deve ter lugar e merece a nossa reprovação.
“Foi o que ela disse, foi o que ela disse”
Este fim-de-semana fomos confrontados com a apologia da homofobia feita por um antigo internacional de futebol português. Parte da entrevista concedida foca-se na sua experiência pessoal com a religião. O futebol para todos não descrimina ninguém pela sua religião, pelos seus hábitos de leitura, pelas suas opções e gostos. Mas no momento em que alguém defende que um homossexual não deve ter os mesmos direitos que um heterossexual, está a limitar a participação de quem tem, na verdade, exatamente os mesmos direitos.
Esta noção de delimitação de direitos acaba por se propagar de forma solta no fenómeno futebolístico. As diferenças existentes no acesso à prática para rapazes e raparigas (que começam a ser combatidas de forma mais dedicada). As diferenças substanciais no tratamento de pessoas com opções sexuais diversas. As diferenças fulcrais no ambiente de festa de quem está num recinto desportivo, perante a utilização de vocabulário homofóbico para apoiar ou apoucar as equipas.
Neste mesmo fim-de-semana, um reconhecido comentador desportivo fez um comentário onde brinca com a linguagem, resultando daí uma ofensa às famílias homoparentais. Todas as semanas assistimos na televisão ao oferecer de espaço público a quem, de forma determinada e clara, tem opções racistas e homofóbicas. E aqui começa-se a entrar na confusão com que estas atitudes são tratadas no espaço público, muitas vezes olhando para o ataque aos direitos humanos como uma opinião. Na publicação da entrevista, no oferecer de espaço de opinião, na partilha incessante (tantas vezes com a defesa da “exposição ao ridículo”) da frase, acaba-se por se normalizar o insulto. Defende-se essa opção com um “foi o que ele/ela disse”. Mas a transmissão de informação não deve ser um mero megafone de tudo o que sai da boca de quem pretende delimitar as liberdades dos outros.
“Era um redondo vocábulo, uma soma agreste”
Este tipo de acontecimentos torna-se pior quando abrimos a lente para entender como o pensamento totalitário invade, semanalmente, a própria análise do jogo. Totalitário na forma como se confunde a opinião com a verdade. Totalitário como se desqualifica a pessoa que nos lê, a pessoa com quem falamos. Totalitário na forma como se advoga um espaço natural para a purificação do jogo. Totalitário na maneira de ignorar que a aprendizagem resulta da globalidade e não da excecionalidade.
O futebol nunca foi puro. O futebol sempre foi ação de contaminação constante, quebrando barreiras, oferecendo oportunidades, permitindo que os fracos se batessem (e vencessem) os fortes, alimentando a ideia de que o impossível é um mito. O futebol nunca foi puro, nem obedeceu à normalização, porque é um acontecimento complexo com face de simplicidade, porque é um constante desafio ao controlo. Quem chega ao momento de achar que sabe tudo, começa a perder exatamente aí. A capacidade de inflingir essa derrota pertence, também, a todos nós.
Os subtítulos são citações de músicas de Throes + The Shine, Conjunto Corona e José Afonso presentes na seguinte playlist:
*A fotografia que ilustra o artigo foi retirada do El País Brasil, num artigo sobre a integração de uma menina de 10 anos num torneio de futebol masculino #meninastambemjogam