Luís Cristóvão

A minha primeira Taça das Nações Africanas

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Abro a caixa de pandora que será o Makas e Mambos com uma recordação muito pessoal. Em janeiro de 1996, eu tinha dezasseis anos e o futuro era um tempo em que tudo podia acontecer. O presente, esse, tinha hora marcada. Tardes inteiras a sintonizar os canais do Arabsat, na pequena televisão do escritório de casa dos meus pais, para acompanhar a par e passo a minha primeira Taça das Nações Africanas.

A ocasião parecia tão boa como outra qualquer. As longas tardes livres da escola secundária, o tempo chuvoso lá fora, um mundo em forma de bola que era, até aí, para mim bastante desconhecido. A antena parabólica já fizera de mim um especialista em piratear as emissões da Eurovisão dos jogos das competições europeias, ainda que sem som, muitas das vezes, e o Arabsat era uma companhia improvável para algumas tardes de fim-de-semana onde me ia entretendo na procura de jogos do campeonato turco.

Mas havia na CAN um outro motivo de interesse. Pela primeira vez, o grande torneio africano reunia duas equipas lusófonas, com Angola fortemente marcada pela presença de jogadores a atuar nos campeonatos cá da terrinha, doze dos vinte e dois chamados por Carlos Alhinho. Moçambique levava três caras conhecidas e os jornais portugueses davam algum eco sobre o que se ia passar na África do Sul, onde uma nova africanidade parecia começar com a libertação de Nélson Mandela.

Entre os angolanos, os dois irmãos caldenses, Wilson e Walter, eram um forte motivo de interesse, sobretudo pela proximidade geográfica que alimentava a rivalidade entre Torreense e Caldas, sobretudo nos Torneios do Oeste, essa gloriosamente esquecida competição dos meus verões passados. Mas numa equipa onde conviviam Paulão, Akwá, Fua, Abel Campos e Quinzinho, o que haveria para não gostar? Os Palancas Negras eram uma espécie de best of de estrelas do meio da tabela do campeonato português. Moçambique completava o quadro com Chiquinho Conde (que craque), Ali Hassan e Tico-Tico.

O entusiasmo que os países lusófonos ofereciam à CAN era diametralmente oposto à capacidade que eles apresentavam de fazer frente às grandes potências africanas. Mas ambas se saíram bastante bem do embate frente a conjuntos muito mais experientes. O Egito, de Hany Ramzy e Sabry (esse mesmo, o que veio a jogar no Benfica), bateu os Palancas na primeira jornada por 2-1, a África do Sul, futura campeã, fê-lo apenas por 1-0 e os poderosos Camarões, onde sobressaíam Foe e Oman-Biyick (duas gerações de grandes), acabaram eliminados depois de empatarem com Angola, 3-3, e isto depois dos Palancas terem chegado aos 80 minutos a ganhar por 3-1.

Moçambique ainda prometeu algo mais, começando por empatar a uma bola com a Tunísia, com um golo de Tico-Tico aos 4 minutos a fazer sonhar os Mambas. Mas ao não conseguir voltar a marcar na competição, as derrotas que se sucederam foram naturais, por 0-1 frente à Costa do Marfim, e por 0-2 frente ao fabuloso Gana, com Ayew e Yeboah na linha da frente, alimentados pelo eterno Abedi Pelé. No final da fase de grupos, as duas equipas lusófonas ficavam pelo caminho, mas eu acabava preso ao que me coloca aqui hoje: o futebol africano.

A qualidade de craques desta competição foi impressionante. O Zâmbia estava já a renascer liderado por Kalusha Bwalya e acabaria por conquistar um lugar no pódio frente a uma das grandes seleções do Gana, que tinha já as sementes do grupo que acabaria por disputar um Mundial, dez anos depois. A Tunísia apresentava alguns grandes nomes da sua história, com El-Ouaer na baliza e a dupla de baixinhos no ataque, Sellimi e Ben Slimane, ainda no início das suas aventuras europeias. Mas ainda Mohamed Kallon, que era mais novo do que eu e marcou pela Serra Leoa, ou a estranha Libéria, com George Weah a apresentar-se como jogador, presidente e líder espiritual da equipa.

Para a memória histórica fica também aquela que dificilmente será ultrapassada como a melhor seleção sul-africana de todos os tempos, com o acerto defensivo de Lucas Radebe e Mark Fish, Erik Tinkler como médio defensivo, John Moshoeu e Doctor Khumalo a espalhar criatividade, Shaun Bartlett, Mark Williams ou Phil Massinga a aparecerem na frente. Para a memória fica também Neil Tovey a receber a Taça das mãos de Nélson Mandela, num torneio que deveria ter tido lugar no Quénia, mas ao desistir da organização, abriu caminho para que os sul-africanos se pudessem estrear na competição a jogar em casa.

Isso apresentou-me algo bem maior do que o futebol. A coexistência dos craques com o significado de pertença ao seu país e continente. A influência cultural que o jogo sofre, na forma como uma diferente forma de olhar o mundo leva, consequentemente, a uma forma específica de viver o jogo. A paixão pelo futebol africano abriu-me as portas para a sua cultura, para a sua música, para a sua literatura, devolvendo-me tudo de volta ao futebol, onde vou mergulhando com a curiosidade e a paixão de quem conjuga coisas que adora. É isso que vou tentar trazer com frequência ao Makas e Mambos, aqui no Futebol Mundial.

Publicado no Futebol Mundial.

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