Luís Cristóvão

Não nos roubem o futebol

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Eu sabia que isto ia acontecer, um dia. E sabia porque aquilo que tem acontecido no futebol nos últimos dez anos já aconteceu em várias outras áreas, científicas e humanas. Quando uma teoria sobre determinada coisa se consegue expressar numa prática que nos dá um lampejo de perfeição e alguns de nós ficam presos a esse momento, não compreendendo que todas as coisas são, sempre, uma construção de uma complexidade tão grande que não convive bem com a perfeição eterna.

O futebol sempre foi espaço de confluência entre arte e ciência, mas viveu boa parte do seu período de crescimento no mundo baseado numa falsa ideia de essência. Porquê falsa? Porque aquilo que se ditou serem os diferentes estilos de praticar a modalidade eram, sobretudo, uma marca forte da personalidade cultural de cada país ou região na forma de o jogar. Os ingleses com  o seu “Kick and Rush” alimentado por uma combatividade dissimulada no terreno de jogo, os brasileiros com o seu jeito “malandro” de tornar simples o complicado, os alemães com a sua abordagem de “tenentes do século XX” a usar a força para contraria o romantismo da sua história.

Começou nos anos 90 a uniformização do que é o futebol. Se em 1988 ainda tivemos a oportunidade de ver jogar uma Holanda, uma União Soviética e uma República da Irlanda tão fiéis às suas imagens culturais, o Brasil, a Itália e a Alemanha de 1990 já eram um passo determinante para o que começava a ser o futebol uniformizado, em que as ideias globais se impõem às características culturais. Essas ideias globais impuseram, primeiro, um futebol mais trabalhado defensivamente, o momento do jogo que havia sido ignorado na génese do desporto, passando, ao longo dos tempos, a tentar organizar-se as restantes fases.

Apesar de muitos falarem do “Futebol Total” holandês como uma marca de ADN do futebol do início do Século XXI praticado, ao mais alto nível da perfeição, com o “Tiki Taka” do Barcelona, eu penso que Pep Guardiola não poderia ter existido sem Arrigo Sacchi e o repensar do “Catenaccio” italiano durante as décadas de 80 e 90. Porque foi no cruzamento da ideologia holandesa com a concretização da defesa ideal italiana que se fez aquilo que hoje entendemos como o futebol perfeito. Essa noção de saber sempre o que fazer perante aquilo que o jogo nos dá, o tomar a melhor decisão, o perceber os melhores espaços, o entender o meio onde estamos e deixar que seja ele a conduzir-nos pelo jogo.

Essa conjugação científica – porque aquilo que em Cruyff era arte, em Guardiola é, sobretudo, ciência – levou-nos a um entendimento da perfeição jogada que, como qualquer um dos dois designados bem sabe, é efémera. Por isso Cruyff se retirou tão cedo, por isso Guardiola não deixa que os seus projetos possam prolongar-se demasiado no tempo, uma lição, aliás, também preconizada por José Mourinho, mesmo se a sua prática pareça afastá-lo da escola da perfeição. No entanto, é inegável que aquilo que o técnico português construiu nos seus anos de FC Porto, Chelsea (1ª passagem) e Inter é também uma perfeição, de novo de tração à defensiva, porque o crescimento da qualidade e organização ofensiva do “Tiki Taka” assim obrigava.

Vivemos, então, no futebol, de uma eterna pulsão pelo domínio do jogo, que se faz, ao longo da história, pela resolução de problemas criados pelos sistemas ofensivos ao nível da defesa, passando, depois, pela resolução de problemas criados pelos sistemas defensivos ao nível do ataque. Se podemos tentar resumir o que seja o futebol, o futebol é isto, este parágrafo aqui. Tudo o resto serão apenas episódios, melhor ou pior conseguidos, da colocação em prática destes princípios.

É por isso que peço que não nos roubem o futebol. Não nos roubem a possibilidade de um jogo ser, não perfeito – porque nada é perfeito a não ser a morte -, mas sim vivo e continuamente fruto de avanços e recuos na forma de o conseguir resolver. Umas vezes pode parecer-nos mais “bonito”, outras mais “feio”, mas como tudo na vida, não podemos ignorar que o futuro é sempre feito da conjugação dos passados. Por isso não há viagens no tempo. Nem hoje a equipa portuguesa que jogará a final do Euro recuou no tempo (porque a forma como joga é, acima de tudo, o reconhecimento do que falhou desde 1996 até 2016), nem outros conjuntos que nos parecem jogar “melhor” (a Croácia, a Bélgica) mereceriam estar no seu lugar pelo simples facto de não terem ainda completado essa análise histórica que está sempre presente nas equipas que jogam as finais das principais competições.

Deliciem-se com o viver da história. É isso que o futebol nos dá diariamente.

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