Luís Cristóvão

Futebol, continuidade e rutura. Uma réplica da vida.

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Na cultura de hoje somos constantemente empurrados para entender o mundo a partir dos movimentos de rutura, como se a história se pudesse fragmentar e recriar sempre a partir de vazios. No entanto, a ideia de continuidade está sempre presente, como um fio (por muito fino que seja) a ligar cada um dos elementos.

O futebol, como é óbvio, não escapa a nada disto. A quantidade de “revolucionários” e “inventores” de futebol moderno com que vamos sendo brindados, faz-nos ignorar tantas vezes a ideia de unidade em transformação de um fenómeno sócio-cultural como o futebol. Para além do mais, os movimentos de rutura teórica no futebol têm sido quase sempre coniventes (ou, mesmo, dependentes?) da manutenção de outras ideias dentro do jogo, sendo a sua dinâmica desenvolvida a partir do choque de culturas e ideias.

Para uma historiografia do jogo, o livro de Jonathan Wilson, Inverting the Pyramid, é um bom auxiliar para que possamos entender que não nos devemos prender à ideia de existência de um futebol antigo e um futebol moderno.

A evolução do jogo produziu-se, desde sempre, a partir das dúvidas existenciais criadas pela forma de chegar ao golo, pela posse de bola, pela gestão do espaço do campo e pela velocidade das ações nele materializadas. Podemos então reduzir a estes quatro tópicos os grandes avanços do jogo. Desde o “Kick and Rush” de Charles Reep, que encontrava num número mínimo de toques a melhor forma para chegar ao golo, até ao “Catennacio” de Helenio Herrera que fechava todos os caminhos para a área. Desde a organização espacial das ideias de Rinus Michels e Valery Lobanovsky, ao incremento da velocidade de pensamento imposta em Barcelona e aperfeiçoada por Pep Guardiola.

A continuidade sempre foi uma das raízes da evolução tática. E, no fundo, também no jogo não podemos ignorar a influência desta noção, mesmo quando somos empurrados, uma vez mais, para a fragmentação do todo.

Porque a bola pincha ou a deslocação contínua

Era uma das perguntas que o treinador António Medeiros gostava de fazer, quer fosse aos seus jogadores, quer fosse aos curiosos do jogo que se aproximavam dele. “Porque é que a bola pincha?”. Esse encantamento produzido por uma bola que salta e rebola por um campo escapa-nos muitas vezes na forma como tendemos a resumir tudo.

Para muitos, o jogo passou a ser apenas resumo. A escolha de uns quantos minutos que servem para explicar o que aconteceu numa partida, ignorando-se, tal como quando se estudava Os Lusíadas a partir das sebentas da Europa-América, que o essencial não está nos factos depurados, mas na experiência da leitura (e da vida).

O futebol é, para além do mais, um jogo de deslocação contínua, onde os nossos olhos seguem a bola, oferecendo-lhe toda a atenção que nos resta, mas que vive essencialmente dos espaços onde a bola (ainda) não está. Por isso mesmo, quando falamos de mudança de flanco, a atenção não deve estar na bola, mas no processo de deslocamentos que aí se realiza e que obriga toda a equipa adversária a reposicionar-se perante nova situação de jogo. Por isso mesmo, quando falamos de vantagens, não podemos ignorar que estas são dinâmicas na sua essência, resultando da constante movimentação dos jogadores no terreno de jogo.

No trabalho realizado por Luís Vilar e Duarte Araújo, entre outros autores, e resumido no artigo “Science of Winning Soccer: Emergent pattern-forming dynamics in association football” percebe-se que o jogo, na sua análise científica, se organiza numa complexa e contínua deslocação de elementos onde, entre jogadores, espaço e bola, a dinâmica das vantagens é sempre efémera e passível de ser transformada taticamente.

Portanto, para discutir o jogo, não nos podemos reter apenas naquilo que acontece na seleção da imagem, mas temos sempre que entender que, na ocupação plena dos espaços, as decisões sucedem-se interligadas e interdependentes entre si. Pode parecer complicado mas é, afinal, apenas uma simples réplica daquilo que acontece na vida de todos os dias.

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