Esta é uma história muito pessoal que, no entanto, penso que seja semelhante à de muitos outros que, de diferentes gerações, passaram por experiências próximas. Uma evolução da análise do jogo desde o momento em que nos aproximamos dele até ao momento em que nos tentamos apropriar da sua ciência.
A generalidade dos rapazes sonha ser jogador de futebol, mas comigo, desde muito cedo, o fascínio esteve em compreender o jogo. No entanto, quando comecei a ir ao futebol, pelos 5 ou 6 anos, o futebol era uma coisa de gigantes. Estava perto, muito perto, do pelado, fosse no Campo Manuel Marques, em Torres Vedras, fosse no Campo dos Moinhos, na Serra da Vila, e o jogo era uma coisa de adultos a correr atrás da bola. Desse ponto de vista, perto da bola, mas ainda abaixo do nível do olhar do jogador, o foco é óbvio, centrado nos duelos pela conquista da bola. Acresce que se estavam nos anos 80, entre a Segunda Divisão e os Campeonatos Amadores, pelo que havia muito mais bola pelo ar do que pelo saibro do pelado.
Por esses mesmos anos, lembro-me de duas experiências que confirmavam o gigantismo do jogo. Uma das primeiras vezes que fui ver um jogo ao Estádio José Alvalade foi o Sporting – Auxerre, na noite de 19 de setembro de 1984. As luzes a iluminarem o relvado, lá bem longe, fizeram-me crer que, no jogo, os gigantes poderíamos ser nós, tal o tamanho de formiguinhas que Manuel Fernandes, e Rui Jordão pareciam possuir… A 19 de março de 1986, fui pela primeira vez ver o Torreense fora de casa, a Santarém, no Campo Chã de Padeiras, na altura, também pelado, onde a distância para com os jogadores (que talvez não fosse assim tanta), me marcaram na memória essa ideia do nosso guarda-redes (o Pedro Espinha, que até haveria de chegar à seleção) também detinha esse poder de ser gigante e pequenino ao mesmo tempo.
Era uma vez na televisão
Se hoje em dia temos acesso a todos os jogos e repetições pela televisão, naquele tempo as coisas não eram bem assim. O jogo televisionado não nos dava essa sensação de ver melhor, apenas diferente, muito diferente, daquilo que era a realidade do jogo jogado nos campos. Isso não nos fazia, no entanto, querer perceber menos daquilo que se passava, embora, com essa experiência múltipla, a noção das diferenças entre um jogo e outro fossem bastante marcantes. Era o tempo do Maradona, do Van Basten, do Andreas Brehme ou do Lothar Matthaus, do Ruud Gullit, do Barcelona de sonho. Era, também, o início de um percurso que nos iria a ter transmissões em direto de jogos como o Tirsense – Felgueiras, já em 93/94, acontecimentos recebidos com um misto de estranheza e prazer, pelo insólito de ter na televisão atores tão distantes dos maiores.
Nessa época já tinha passado pelo Manuel Marques, agora relvado, a Primeira Divisão. Pessoalmente, foi uma experiência marcante para unir os gigantes e as formiguinhas, porque nestes jogos já eu me sentava numa das bancadas laterais, já tentava entender as formações defensivas e os foras-de-jogo (Obrigado Sacchi por tornares a “armadilha do fora-de-jogo” o grande momento do jogo nesses tempos), já olhava para os pontapé de canto como um momento que poderia ser decisivo para chegar ao golo. Lá está, a maneira como te posicionas para ver o jogo tem uma enorme influência na forma como o lês, e naquela altura aprendi a ler linhas defensivas e bolas paradas. A magia dos grandes criativos, num campo de dimensões reduzidas, podia aparecer, mas tinha sempre que se haver de forma dolorosa com a rispidez de médios como o Hélder ou o Evandro.
Experimentar o banco
Passaram-se os anos da Primeira Divisão em Torres Vedras, a equipa começou a cair nas divisões, eu experimentei vagamente a ideia de ser jogador (o meu treinador gabava-me muito o posicionamento defensivo, mas jogar à bola não era para mim) e tive nova oportunidade que viria a mudar a forma como olhava para o jogo. Pelo contexto familiar, conheci e convivi pessoalmente com uma série de treinadores que passaram pelo Torreense entre os anos 90 e os inícios do Século XXI, bebendo das fontes todas as histórias que hoje se estudam, no que toca a liderança e gestão de grupos. Entre eles, uma referência suprema, António Medeiros, que para lá de todas as histórias de vida que carregava consigo, me ia dando a oportunidade de, quando eu ia ver os treinos, me ir comentando o que se estava a passar no mesmo.
Nessa altura, percebi que o futebol era muito mais do que futebol. Era preciso entender como o jogador pensava e sentia para o poder transformar. O velho Medeiros, como um avô que tudo entende, não só o sabia fazer, como o conseguia prever e, também, explicar. Parecendo que não, é um exemplo grandioso do que é a análise. Se por aquela altura alguns já o faziam de forma inadvertida, no António Medeiros tudo era calculado. A intervenção no jornal, a meio da semana, para lançar uma frase que influenciaria o adversário, a mensagem no meio do treino, um pedido especial a um determinado jogador, a forma como manipulava as suas expetativas, responsabilizando-os ao máximo pelas suas opções, mas também oferecendo total compreensão no momento do erro.
Acredito que aprendi muito sobre o que é o jogo e como o compreender nesses anos. Não só porque estava em contacto direto com o trabalho de alguém com muita experiência, como também o fazia como um observador neutro, podia andar por ali, ao lado do treino, no autocarro a caminho de algum jogo, no almoço antes de uma partida, que ninguém precisava de alterar o seu comportamento perante mim. Era só um miúdo, uma mosca que via e ouvia tudo, sem contaminar o contexto.
O futebol dos livros
Quando me dizem que é preciso ser jogador para se perceber bem o jogo, não concordo. E não concordo porque, não só a minha experiência, mas toda a literatura existente sobre o assunto revela que, ter jogado o jogo pode ser uma vantagem, mas não é um dado decisivo para tal (fale-se de um possível treinador, analista, etc…). No entanto, tenho a certeza que experiências relevantes e diversificadas ligadas ao jogo têm uma influência grande na forma como o entendes e, sim, dessa forma, poderão acabar por ser importantes nas decisões tomadas. Ter chegado aos livros de futebol (ou ao futebol dos livros) depois do meu percurso ligado aos atores do mesmo, permitiu-me organizar as ideias que tinha e entender melhor acontecimentos que, tendo-os vivido de perto, careciam de uma explicação mais científica.
Ao mesmo tempo, ao ler sobre outras experiências, outros estudos, outras realidades, aumentei o meu número de dúvidas e questões sobre o jogo, aprendendo a questionar aquilo que via mas, sobretudo, aquilo que eu sabia, transformando a essência da minha visão sobre o jogo já algo mais distante do ponto-de-vista de onde o observo. Agora, o importante já não é o lugar onde me sento a ver o jogo, o importante é aquilo que observo no mesmo, e se as imagens da televisão e da repetição são uma ajuda preciosa para entender comportamentos coletivos, sistemas de jogo, possibilidades de linhas de passe, a tomada de decisão, quer do jogador, quer do treinador, está muito mais visível no jogo ao vivo, quando se olha a postura, a forma como se comunica, a maneira como se aborda cada situação.
O futebol compreende-se, sobretudo, quando se olha para ele como uma ciência humana. Mesmo quando toda a tecnologia está apontada ao projeto de o compreender, é sempre na dimensão do Homem e da sua relação com aquilo que o rodeia, que estarão, não as melhores respostas, mas as mais profundas perguntas.
A contar os degraus da escada, cada vez me questiono mais.