Estamos, por estes dias, a analisar as palavras do sociólogo francês Frédéric Rasera, autor do livro “Des footballeurs au travail. Au cœur d’un club professionnel”, da Editora Agone. Depois de no primeiro artigo termos explorados as questões do Profissionalismo, Paixão e Individualismo, neste segundo texto falamos da hierarquia no local de trabalho e do conhecimento especializado de treinadores e jogadores.
O chefe manda
O que diferencia o futebol de outras modalidades coletivas e individuais é a performance ser dependente da escolha de uma pessoa. Ao contrário de outros casos, onde temos números, tempos, marcas para avaliar, neste, a decisão pode ser feita a partir de critérios próprios e não uniformes. É por isso natural vermos jogadores insatisfeitos com as decisões dos treinadores
O contexto do futebol apresenta-nos um ambiente de trabalho profundamente hierarquizado, em que as decisões dependem de critérios próprios e, habitualmente, não uniformes. O trabalho de Frédéric Rasera ajuda-nos a compreender a evidência de que, num clube, existe um contexto onde o treinador – que também é um assalariado – toma decisões sobre a vida de um jogador, ao mesmo tempo em que responde a um dirigente que, também ele, não dispõe de meios de avaliação que sejam reconhecidos e testados no meio.
O jogador acaba por ficar, desta forma, numa posição de fragilidade, visto não ter outra forma, que não seja a sua opinião contra a opinião de quem decide, para avaliar o acerto da mesma. Ao mesmo tempo que, ao nível salarial, o jogador pode ser encarado como um quadro técnico de mais valia numa equipa – é consensual considerar que, no rendimento, as equipas com melhores jogadores estão mais perto do sucesso -, na prática, o jogador surge como um mero executante, não tendo uma palavra a dizer sobre o desenvolvimento do seu trabalho.
Os jogadores descontentes com o seu estatuto chegam, muitas vezes, à mesma conclusão: precisam de provar o seu valor. Deste ponto de vista, os jogadores participam na sua própria dominação
A necessidade constante de comprovar o seu valor dentro da estrutura onde trabalha, e a aceitação dessa necessidade como fazendo parte do jogo, leva a que o futebolista contribua ativamente para a sua própria dominação, como defende Rasera. O posicionamento de subalternidade acaba reforçado, o que poderá ter implicações na forma como o jogador se percepciona.
A importância da teoria
Os jogadores não são marionetas, entraram muito jovens neste trabalho, adquiriram conhecimento sobre o como fazer e podem comparar entre os vários treinadores que tiveram. No futebol, o aspeto teórico está muito presente
No entanto, ao mesmo tempo que no discurso público, os jogadores assumem-se como executantes das ordens do seu treinador, não se pode entender que estes sejam apenas elementos que seguem ordens. O conhecimento teórico e o domínio da tática do jogo são considerados essenciais para que, dentro da hierarquia, cada elemento veja reconhecido o seu papel.
Vivi um episódio em que um treinador, com longa carreira enquanto jogador, é contestado em privado por alguns jogadores devido a este não demonstrar suficientes conhecimentos para teorizar o futebol.
Ao longo da sua carreira, os jogadores vão acumulando conhecimento que lhes permite distinguir e reconhecer a validade das instruções do seu superior hierárquico. Ou seja, vão construindo e testando as suas próprias ideias acerca do jogo, podendo, inclusive, adoptar atitudes e posições que considerem necessários durante o jogo, numa dimensão do jogo que Frédéric Rasera reconhece torná-lo possível.
Em suma, apesar do contexto laboral estar construído em níveis de comando que não dispõem de ferramentas de avaliação pré-estabelecidas, os jogadores, enquanto executantes, têm capacidades para reconhecer a qualidade das instruções recebidas e, dentro do próprio jogo, beneficiam de um contexto onde se podem adaptar e adoptar instruções a partir da sua experiência pessoal. A hierarquia, assegurada ao nível teórico e sem participação dos executantes na tomada de decisão, pode assim ser colocada em causa através da prática do executante. É este o contexto que torna o ambiente de trabalho no futebol tão sensível.
Nota
As entrevistas utilizadas para a escrita do artigo são:
Frédéric Rasera : «Chez les footballeurs, la souffrance psychologique est banalisée», Libèration, 17/11/2016
Au football, «les joueurs n’ont que très peu de poids sur la définition de leur travail» – Le Temps, 16/12/2016
Frédéric Rasera : « Le temps de jeu est une arme pour les employeurs», Les Cahiers do Foot, 17/02/2017