A ilusão da criança prodígio ganha mais força quando televisionada. Para juntar à ideia de que o futuro está, logo à partida, conquistado, nada melhor do que uma prova audiovisual para juntar à enorme lista de dados seguros (a opinião de um antigo jogador de passagem pelo campo onde joga uma criança, os golos marcados no fim-de-semana, o tão melhor que os outros da equipa que ele aprece ser).
Há dez anos atrás o meu trabalho era 70% futebol e 30% educação. Hoje, os formadores fazem o inverso.É por isso que, agora, as competências do treinador e do formador devem ser totalmente diferentes em comparação com o passado. E faltam-nos, ainda, verdadeiros especialistas nos temas de comunicação, já que as relações passaram a ser o mais importante.
Jean-Michel Vandamme, responsável de formação no Lille
O jogador que alimenta uma indústria de consumo acelerado transforma-se, desde cedo, num produto perecível. Há que retirar desde cedo todo o rendimento possível de uma eventual qualidade que se pode ou não confirmar mais tarde. O que é importa é garantir, desde logo, a percentagem no bolo que há-de ser o grande jogador que ele já é.
Se um jovem jogador assina o seu primeiro contrato profissional connosco, é que oito em dez vezes, temos reais esperanças de sucesso para ele. Temos certezas ao nível da sua personalidade, do seu carácter, do seu ambiente familiar, da sua ética de trabalho, da sua disciplina e da sua capacidade para se colocar em questão. Não podemos continuar a trabalhar com medo da passar por parvos, se deixarmos sair um jogador e ele acabar a assinar um contrato de 10 milhões noutro lado qualquer. Certas situações transformam-se rapidamente em chantagem.
Remi Garde, responsável de formação no Olympique de Lyon
O que importa, então, não é o que joga mas o que parece jogar. Medir tudo sob o efeito visual dos grandes. Não interessa se os golos são marcados, num baliza de futebol de 11, com remates por alto onde os pequenos guarda-redes ainda nem sonham chegar. “Um grande remate, um grande golo, uma grande formação”. Repete-se à exaustão para parecer ainda maior do que realmente parece.
O maior problema é que o interesse desportivo já não é uma prioridade. Esse combate já está perdido. Existe sempre o agente, o irmão, o pai, a mãe, o tio, que querem ter a última palavra e ficar com a razão aos olhos do jogador. Um jovem jogador um pouco talentoso transforma-se, rapidamente, no patrão de uma pequena empresa que pode trazer muito dinheiro. Com 12 ou 13 anos, determinados jogadores já têm um agente. A noção de prazer desaparece muito cedo.
Didier Deschamps
O próprio prazer se deforma na industrialização das interpretações. Faz-se da ilusão uma notícia e deixa-se de contabilizar os resultados para contabilizar as próprias notícias. Qualquer impressão reforça as grandes frases feitas, “somos os melhores”, deixando sempre à responsabilidade do ainda-criança-futuro-jogador todos os erros possíveis de o colocar fora do caminho para a glória.
O processo começa por volta dos 13 anos. Isso significa que entre os 10 e os 12 anos, já anda imensa gente (olheiros, agentes, …) em redor dos miúdos. Vamos matá-los logo aí, à nascença. Para mim, é um nado-morto.
Henri Stambouli, formador no Olympique de Marselha
A formação não se coaduna com a pequena glória, que deveria ser apenas um prazer, uma alegria, a partilhar com o jovem que um dia pode, ou não, ser jogador. A formação não se coaduna, também, com a ilusão de um qualquer golo repartido pelas redes sociais. E não bastarão ser os treinadores a fazer todo o esforço para recuperarmos o bom-senso. É um esforço colectivo que ainda nem sequer começou a ser feito.
Nota – Todas as citações foram retiradas do livro Racaille Football Club, de Daniel Riolo, publicado em 2013.