Parece-me que, cada vez mais, vamos assistindo ao desenvolvimento de interpretações que vêem um desfasamento entre o futebol que cada equipa pode jogar e o futebol que, cada uma dessas equipas, joga realmente. Uma das consequências desse tipo de interpretação é o ver como arriscadas ações que acabam por terminar com erros, sobretudo os de perda de posse de bola no próprio meio-campo.
É salutar que, cada vez mais equipas tenham treinadores que acreditam que uma das melhores formas de defender a sua baliza é mantendo a bola em sua posse, encontrando numa construção do seu ataque a partir de ações coletivas que promovem o passe e o controlo do objeto que todos disputam num jogo de futebol.
1977/78 | 1987/88 | 1997/98 | 2007/08 | 2015/16 | 2016/17 | 2017/18 | |
Golos/Jogo | 2,44 | 2,27 | 2,52 | 2,3 | 2,72 | 2,38 | 2,65 |
Jornadas | 30 | 38 | 34 | 30 | 34 | 34 | 19 |
*Dados relativos à Primeira Divisão dos Campeonatos e Liga Portuguesa
Como também podemos entender pelos resultados que se vão verificando nas partidas da Liga portuguesa, as variações do número de golos por jogo não são relevantes, mantendo uma certa estabilidade nas últimas quatro décadas. Esse dado poderia ser o suficiente para clarificar a discussão sobre o risco, já que, do ponto-de-vista das consequências, não vemos mais equipas a serem goleadas devido ao seu modelo de jogo (ou falta dele), muitas vezes assistindo, até, a encontros de maior equilíbrio na forma como os diferentes conjuntos abordam o jogo.
No entanto, seja nos comentários televisivos, seja por opinião escrita, seja, mesmo, pela reação da bancada, percebe-se que esta ideia de que determinadas equipas arriscam demasiado quando, por exemplo, tentam construir a partir da primeira fase com posse e passe, vai fazendo escola e procurando impor-se aos que chamam de líricos por acreditarem que jogar futebol com bola é possível.
Esta jornada, um erro do CD Tondela deu origem a nova discussão sobre o tema. No lance que podemos ver em baixo, Sulley, médio-defensivo dos beirões, recebe a bola na entrada da sua área, roda e, perante a pressão exercida pelo FC Porto, acaba por perder a posse numa situação que gera o único golo do FC Porto no encontro.
Num artigo fundamental de Jorge Castelo, publicado no nº31 da revista FPF360, podemos encontrar pistas para entender o que, neste tipo de situações, está em causa. E não, lamento desiludir os crentes no “chuta prá frente”, mas não é risco. Escolhi algumas passagens que podem ilustrar bem os meus objetivos neste artigo.
A intervenção dos jogadores na situações de jogo realizam-se numa relação do previsível e do imprevisível. Assim, importa entender o: (i) espaço do previsível. No jogo existe uma dimensão previsível cuja intervenção é suportada pela aplicação dos princípios de jogo pré-estabelecidos, derivando de padrões comportamentais parametrizados pelo modelo de jogo; (ii) espaço do imprevisível. No jogo existe uma dimensão menos previsível que resulta da aleatoriedade da situação, a qual, será resolvida pelas margens de criatividade e autonomia dos jogadores, no quadro das fronteiras ou do perímetro do modelo de jogo da equipa.
Simplicar os processos ofensivos […] (iv) dificultar as ações de marcação sobre os atacantes, através de deslocamento de trás para a frente da linha da bola; (v) eliminar pontos fixos que se possam constituir como referenciais de marcação, relativamente aos adversários.
Ajustar decisões/ações perante a contigência e a conjuntura de cada situação de jogo, que só terá êxito se o quadro relacional tempo/espaço for corretamente utilizado em cada momento do ataque.
Jorge Castelo
Tomemos, então, como referência, o lance escolhido do encontro entre FC Porto e CD Tondela (ver vídeo). Perante a saída de bola do guarda-redes para o jogador de campo que surge na entrada da área, a equipa tondelense adotou um comportamento previsível, identificado pelo adversário como um derivado do padrão comportamental do seu modelo de jogo. Isto não é um risco, é apenas uma coisa que todas as equipas fazem, comportar-se de acordo com os seus princípios.
No entanto, esse princípio não terá sido desenvolvido para, nesta jogada em concreto, “dificultar as ações de marcação” do adversário, porque não eliminou pontos fixos (a equipa tondelense não oferece largura), nem ofereceu opções de penetração para lá da primeira linha de pressão. Para além disso, o jogador em causa não ajustou a sua decisão perante a “contigência e a conjuntura” da situação, reagindo de forma automática e colocando a bola onde esperaria encontrar um companheiro (que não estava lá).
Uma análise consistente desta ação, sublinharia a importância de, no modelo da equipa de Tondela, serem desenvolvidos os seus mecanismos coletivos de controlo da posse de bola perante pressão alta, para além de, no caso concreto de Sulley (limitado por estar a fazer os seus primeiros minutos nesta equipa), trabalhar o seu processo de decisão. O jogador reagiu conforme ao modelo da equipa, ignorando que este precisa de se adaptar ao adversário. Essa adaptação é mais complicada quando fazemos os primeiros minutos de jogo com uma equipa.
Tendo isto em conta, quando Pepa assume as culpas pelo golo sofrido, está a assumir o seu modelo de jogo e o trabalho que ainda terá que desenvolver dentro do mesmo. Não está a dizer que arriscou. Como dizia o grande mestre António Medeiros, treinador de futebol, “um risco é estar vivo”.
Referências
“Tendências evolutivas do jogo de futebol” – Jorge Castelo, Revista FPF360 nº 31
“Errar é humano e acaba em golo” – Luís Cristóvão, Goalpoint