Indignação, video-árbitro e responsabilidade

Todos os três grandes têm razões para reconhecer que já foram beneficiados, mas todos preferem olhar apenas para as situações em que saíram a perder. Na época em que o video-árbitro mostra como é difícil encontrar a unanimidade, procuramos desenhar um guia para a ação do trabalho no futebol.

Jogaram-se 23 jornadas da Liga NOS e todas as equipas que ocupam os primeiros três lugares da tabela e ainda lutam pelo título beneficiaram, aqui ou ali, de decisões erradas de um árbitro. É natural. Quanto mais longo um campeonato, mais as equipas que ocupam os primeiros lugares têm desses benefícios, seja por apresentarem um futebol dominador frente à maior parte dos seus adversários (mais posse de bola, mais passes no último terço, mais remates), seja por, devido a haver título envolvido na conversa, seja mais difícil tomar certas decisões que possam, no final do ano, ser destacadas como a que “deu” ou “tirou” o título à equipa x. Nenhum árbitro quer um destaque desses.

No entanto, entre os elementos de cada uma destas equipas e os seus adeptos, não são as situações em que saem beneficiados a ser tema de conversa, mas sim as situações que beneficiam os seus rivais. Quando acontece com a própria equipa, estamos sempre perante uma “situação natural dada a nossa qualidade”, mas quando acontece com o adversário, a indignação pela “incompetência ou roubo” explode. Este discurso constitui-se, aliás, nos dias de hoje, como parte integrante das estratégias de comunicação de cada um dos três grandes, sem exceção, de tal forma que até já chegou aos treinadores, que neste ou naquele jogo, não resistem a puxar do número de faltas de uma equipa mais pequena ou dos seus erros de organização defensiva para tentar atingir o rival.

Ora, para quem entende o desporto como um modo de vida, isto é incompreensível. Porque dentro da competição, na verdade, não há quem queira perder ou facilitar seja o que for. Os jogadores das equipas menos poderosas beneficiam sempre que conseguem boas exibições nos jogos “que toda a gente vê”, para além dos respetivos prémios de vitória associados. Os árbitros também dispensam muito bem toda a atenção extra que possa recair sobre eles, tendo em conta a tranquilidade necessária para que possam exercer as suas funções.

Nem o VAR nos acode

Em agosto de 2016, escrevia sobre as experiências de vídeo-árbitro realizadas nos Estados Unidos:

Porque vai obrigar a que todos nós conheçamos melhor as regras do jogo, bem como as suas interpretações, para além de irmos ter uma série de provas sobre o facto de ser impossível ter o mesmo ponto-de-vista sobre um dado acontecimento – mesmo quando este está ali, escancarado, em repetição, num ecrã de televisão.

O artigo em questão parece-me estranhamente atual. Porque na sua base estava a necessidade de um conhecimento mais aprofundado daquele que é o trabalho das equipas de arbitragem, bem como o reconhecimento de que é praticamente impossível chegarmos a uma unanimidade sobre as suas decisões.

Ora, isso não só fica comprovado ao longo destas 23 jornadas, como salta à evidência de que essa unanimidade não é sequer desejada, nem por quem duvidava do sistema, nem por quem o defendia. É apenas mais uma ferramenta para adicionar à narrativa de que existe um poder oculto que decide sobre o futuro do jogo, independentemente dos jogadores, independentemente dos treinadores, independentemente, até, da bola, algo que tornaria todo e qualquer jogo apenas uma simulação estéril de competição. E, no entanto, continuamos a ver os jogos e a discuti-los, porque o encanto pelo jogo é superior à desconfiança que se tenta instalar.

As redes pouco sociais

Esta exaltação como modo de respirar acaba por ser muito empurrada para o mundo do anonimato das redes sociais. Em vários relatos parece-nos ser por aí, num mundo do indefinido, que residem as forças negras que tratam mal o nosso futebol. E, no entanto, semana após semana, o discurso de quem defende o jogo e a sua ética (quando os resultados lhe são favoráveis), acaba por migrar para o outro lado da barreira se os resultados já não são os que lhe interessam.

Fica, quem quer falar de futebol, fechado na sua concha, isolado, como sempre, desta maré alta de indignações. E, no entanto, não vejo este como um problema “português”, nem do “futebol”. É um problema global, de falta de confiança nas instituições que eram vistas como tal, por termos passado de um contexto em que se vivia num cânone institucional definido, para um outro em que cada um procura, nos seus contactos e no seu meio, construir uma pequena rede de autoridade inquestionável.

Este caminho abafa todas as possibilidades de se estabelecer um diálogo que restabeleça a normalidade no mundo que rodeia o futebol. Porque quem ocupa os lugares de relevo não consegue manter a sua independência na forma como analisa os acontecimentos, tal como não consegue separar as águas sobre aquilo que é o seu comportamento público e privado. Quando temos uma imagem pública, como analistas, jornalistas, empresários, ou seja o que for, mesmo nos momentos em que não estamos a “trabalhar”, carregamos essa função connosco. Esquece-lo é abrir caminho para um território sem rei nem roque.

Em resumo

Talvez seja já tempo de percebermos que, mais importante do que as indignações semanais, é fundamental que cada um de nós promova o reconhecimento dos acontecimentos, a sua análise e o estudo das suas regras e razões para ocorrer, a aceitação das limitações que o próprio jogo encerra e consiga, depois de tudo isto, estabelecer um comportamento que possa ser regido pelo equilíbrio. Por saber como isso é difícil, não vos vou pedir que o façam. Vou ficar com este artigo como guia para a minha ação.

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