Presente na MIT Sloan Sports Conference deste ano em representação da Hub de Inovação do FC Barcelona, Javier Fernández, Data Scientist do clube catalão, apresentou um estudo, feito em conjunto com o professor Luke Bornn, da Simon Fraser University, sobre a criação de espaços no jogo de futebol. Partindo de exemplos retirados do jogar do FC Barcelona, procura dar um contributo para a resposta a uma das mais críticas perguntas no treino do futebol: o que devo fazer quando um colega tem a bola em sua posse?
Esqueçam a ideia de que existe uma guerra silenciosa entre aqueles que, no futebol, defendem o uso da estatística e uns quantos outros que fazem gala de a ignorar. Esqueçam todas as ideias de que o futebol é algo que está fora da alcance de uma explicação científica. Esqueçam, ainda, todas as ideias de que os limites de algo condicionam a sua utilização.
A grande maioria daqueles que tendem a olhar o futebol como uma arte, ignoram profundamente os processos da sua criação. Tendem a ter uma visão datada da inspiração e da criatividade, tendem a procurar territórios onde possam manter sem discussão os conceitos limitados que defendem. Tudo o que é arte nasce de um profundo processo de reconhecimento das suas ferramentas, do questionamento do seu posicionamento perante o mundo e da quebra de limitações impostas pela história de cada área de conhecimento.
O trabalho desenvolvido por analistas e especialistas na Hub de Inovação do FC Barcelona trabalha no aprofundamento do conhecimento existente sobre a forma de jogar, aplicando num cenário científico, a recolha dos níveis de especialidade de pessoas que trabalham no clube, os modelos e comportamentos no jogo, procurando dar resposta à concretização dos sonhos daqueles que são as grandes fontes de inspiração do clube.
Tenho para mim que as ideias de Johan Cruyjff e Pep Guardiola se baseiam exatamente nesta busca da quebrar as limitações do jogo, através de um pensamento genuinamente matemático, que questiona a realidade para partir para o desenvolvimento de uma filosofia que abranja todas as questões em volta do futebol. Por isso mesmo, no trabalho apresentado por Javier Férnandez, se destacam duas citações:
Quando você joga uma partida, é estatisticamente comprovado que os jogadores ficam com a bola, em média, três minutos. O mais importante é o que você faz durante os outros 87 minutos em que não tem a bola. Isso que determina se você é bom jogador ou não.
Johan Cruyff
Temos que passar a bola, sim, mas com uma intenção clara. Passar para arrastar jogadores para um lado e criar espaço no lado oposto. Depois, mover a bola até lá. É o nosso jogo.
Pep Guardiola
De uma forma sucinta, tento explicar aquilo que o artigo Wide Open Spaces: A statistical technique for measure space creation in professional soccer nos oferece como novidade.
Olhar além, onde o olho não vê
A questão da análise do jogo e a discussão sobre a observação do mesmo, utilizando apenas o elemento humano ou apetrechando-o de aparato tecnológico para consolidar a informação recolhida, está por demais respondida no início de 2018. Não há forma de garantir que um ser humano, por si só, consiga aprofundar a sua observação a um nível de detalhe que a tecnologia nos oferece hoje. Isto, no entanto, não dispensa o elemento humano, pelo contrário, fornece-lhe condições para apurar os dados recolhidos como especialista, aprofundando o nível do seu conhecimento.
As dinâmicas do jogo sem bola são fundamentais para o entendimento das capacidades de um jogador, sublinhando-se que a grande maioria das vezes em que este é chamado para tomar uma decisão durante o jogo de futebol, fá-lo sem ter a bola em sua posse. Javier Fernández reconhece que, nos modelos de jogo das principais ligas, onde a procura da posse de bola é um dos princípios adotados, surgem associadas ideias como “a criação de superioridades (numéricas, posicionais ou qualitativas), a criação de desordem na defesa adversária através de movimento e de colaboração coletiva, a construção de jogo a partir do guarda-redes e a execução de passes com intenção ofensiva.” A criação de espaços é, no futebol de hoje, um dado fundamental da superioridade das equipas.
Para melhor analisar a forma como os jogadores se posicionam em áreas de valor acrescentado, este estudo procura definir aquilo que é uma “ocupação ativa” e o que é uma “ocupação passiva” dos espaços, procurando, no passo seguinte, aprofundar a ideia através do conceito de “geração de espaços”, ou o arrastar dos adversários em consequência do movimento do jogador. De forma a clarificar a noção de valor dos espaços, este estudo foi mais além do que tem sido, tendencialmente, utilizado no estudo deste conceito, reconhecendo a não continuidade do controlo do espaço por um só jogador.
As propostas sobre o espaço
Javier Fernández e Luke Bornn procuram definir conceitos que permitam uma aprofundamento deste tipo de estudos, abrindo portas para a sua replicação. Por exemplo, apresentam um “Modelo de controlo do terreno do jogo” que tem em conta a localização, a velocidade e a distância da bola para todos os jogadores. Para cada localização é tida em conta uma probabilidade de controlo do espaço. Este conceito procura definir-se através de um mínimo de dados possíveis, tendo em conta que o tracking data da Liga Espanhola não é de uso livre (uma das grandes limitações para um aprofundamento do conhecimento da análise avançada no futebol, por comparação com outras modalidades).
A partir daqui tentam definir a “Área de influência do jogador” de uma forma dinâmica, alimentando a ferramenta com dados que permitam avaliar diferentes características espaço-temporais do jogo, como a criação de vantagens posicionais, a influência da densidade e pressão de situações defensivas e a criação e geração de espaços.
A noção de “valor do espaço” lança questões bastante interessantes sobre a criação de um modelo de análise, já que aos dados recolhidos acrescenta a participação de especialistas em análise do FC Barcelona, testando a hipótese de reconhecer o valor de cada área do terreno de jogo a partir do comportamento defensivo das equipas, ou seja, entender o valor do potencial de criação de perigo a partir daquilo que uma equipa, no momento de organização defensiva, adota como posicionamento. Neste caso, o modelo de inteligência artificial utilizado ainda precisa de um maior desenvolvimento.
Os conceitos centrais da proposta são o “Ganho de Ocupação de Espaço (SOG)”, como a “quantidade relativa de espaço conquistado numa determinada janela de tempo”. Esse ganho é depois repartido por “ativo” ou “passivo” consoante a velocidade do jogador em determinada jogada. Outro conceito é o “Ganho de Geração de Espaço (SGG)”, que envolve dois ou mais jogador numa situação ofensiva e inclui um jogador gerador de espaço (através do movimento e do arrastar de adversários) e um ou mais jogadores recipientes desse espaço.
Validação e discussão do espaço
A capacidade de criação e ocupação de espaços são características muito presentes no treino do jogo de futebol. Para um mais profundo entendimento destas características, os treinadores e analistas baseiam-se, fundamentalmente, na análise de vídeo de jogos e treinos. Conforme defendem Fernández e Bornne, “apesar de analistas de elite no futebol terem, tipicamente, uma grande capacidade para compreender conceitos complexos a partir da observação do jogo, as dinâmicas da criação de espaço são tão frequentes e ocorrem em tão curtos espaços de tempo que se torna impraticável chegar a conclusões seguras apenas utilizando a observação de um só jogo”. A validação do trabalho realizado neste estudo teve, por isso, em conta, a necessidade de confrontar e afinar os dados recolhidos com a participação de dois analistas do staff do FC Barcelona.
A partir das análises realizadas em jogos da temporada 2016/17, os resultados apresentados neste trabalho apresentam Iniesta, Sergio Busquets e Lionel Messi como os jogadores com maiores índices de “Ganho de Ocupação de Espaço”, através dos diferentes papéis que cada um tem na equipa. De uma forma geral, ocorre que um jogador tem uma superior ocupação ativa do que passiva nos jogos, com a exceção a ser Lionel Messi. A sua capacidade de ocupar espaços sem necessitar de correr é sublinhada no artigo como um dado de extrema eficiência apresentado pelo argentino. No que toca aos “Ganhos de Geração de Espaço”, a Iniesta e Messi juntam-se jogadores como Neymar e Suárez.
De uma forma geral, este estudo vem criar uma nova base de trabalho para o entendimento do valor das ações sem bola, o que é cada vez mais entendido como essencial no desenvolvimento de modelos de jogo eficientes no futebol atual. A necessidade de acesso a mais dados, bem como o confronto destes dados com o de outras equipas que tenham diferentes comportamentos adquiridos ao nível das suas ações coletivas, acrescentará conhecimento e entendimento da importância do espaço. Para mim, é fundamental entender a preciosidade de conseguirmos quebrar limites ao entendimento do jogo através do seu estudo profundo. Uma vez mais, que seja em Barcelona que se centre um berço de inovação no que toca à análise do jogo só vem confirmar como a filosofia de um clube tem consequências enormemente positivas no entendimento das suas escolhas e decisões.
Por outro lado, este estudo vem oferecer uma clarificação de conceitos relativos ao espaço, ao entendimento sobre a sua conquista e geração, à forma como essa conquista é feita, ativa ou passivamente, bem como às variáveis a que devemos dar relevo na sua análise (comportamentos defensivos e opções estratégicas dos adversários), que é fundamental para que a linguagem do jogo continue a evoluir com o conhecimento a que temos acesso hoje. Por tudo isto, é importante conhecer o trabalho que se vai fazendo em cada clube do mundo. Encontros como o MIT Sloan Sports Conference são já datas obrigatórias no calendário de quem quer saber do que fala quando fala de desporto.
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