Crescemos a ouvir as palavras de Gabriel Alves, que sugeria um confronto entre força e técnica nos terrenos de jogo em Portugal. A memória, que já não é o que era, acrescenta-nos um primado de qualidade de futebol que, infelizmente, raramente se confirma quando vamos ver um jogo do passado. Por isso mesmo, devemo-nos questionar se a evolução do jogo é uma regressão ou se é a ciência quem salvará o futebol.
Todos aqueles que jogaram futebol na rua sabem que há duas formas de conquistar o jogo. Pela chamada “malandrice” de jogador, que junta as capacidades coordenativas treinadas até ao limite do muro ou do buraco no alcatrão, à gestão perfeita do controlo da bola, num misto de confiança e criatividade que lhe permitem ser o “maior” da sua rua. Ou, no exato sentido contrário, pela impiedosa conjugação de força e imposição espacial que o “caceteiro” apresenta, sabendo sempre estar no sítio e na hora certa, a impedir a realização da finta, do passe ou do golo.
Pode ser que algum dos meus leitores tenha tido a sorte de viver numa rua onde só os malandros jogavam, um contra um, dois contra dois, três contra três, conseguindo marcar golos em balizas mínimas feitas com camisolas pelo chão. Mas nas ruas por onde eu andei, nas praias, nos pelados, o que fica demonstrado é que se o malandro ganha jogos, o caceteiro manda na bola – e só havia jogo se ele quisesse.
Nos nossos dias, quem se lamenta de um futebol marcado pelo aparato físico e tecnológico, como que uma robotização do próprio jogo, talvez tenha sido bafejado pela sorte em criança. Ou talvez tenha vivido a finta mais nas fotografias das revistas que, essas sim, sempre trouxeram posters de craques a dominar a bola em detrimento das entradas brutais dos Vinny Jones desta vida. E, no entanto, quando Gabriel Alves nos entrava por casa dentro a falar desse confronto entre a “força da técnica e a técnica da força”, poucos pareciam entender que, acertando os conceitos, se falhava nas oposições. As duas construções sempre andaram juntas nos campos de futebol.
A ciência salva o jogo
Há muita gente que não gosta daquela minha frase, ou acha que é parva, mas não é – “A força da técnica e a técnica da força”. O Eusébio tinha as duas coisas e conjugava-as. Era o exemplo disso. Não esquecendo o Pelé, que apareceu com uma nota artística, parafraseando o nosso conhecido Jesus, fantástica e fabulosa. Depois veio o Diego Armando Maradona com uma capacidade atlética invulgar. E atenção, porque ele treinava e não conseguia fazer aquilo sem treino. Depois tinha a questão ocular, que era dele, com uma visão periférica fantástica. Ele metia a bola e nem olhava. Surpreendia e era intempestivo em relação ao adversário, fazia sempre aquilo que achavam ser impossível.
Gabriel Alves, numa entrevista ao Tribuna Expresso, em maio de 2017
Nos finais dos anos 80 e inícios dos anos 90, os jogos narrados por Gabriel Alves levavam-nos em autênticas viagens pelos inusitados territórios do entendimento do jogo. Sem querer ser injusto para outros que, antes dele, tenham elaborado o mesmo esforço, mas foi este o comentador que passou do jogo enquanto experiência estética e emocional, para a procura de uma visão que nos explicasse, num realismo mais cru, aquilo que acontecia em campo.
Como qualquer cientista, Gabriel Alves falhou muitas vezes, algumas delas escandalosamente, como só acontece a quem se experimenta em territórios que quase ninguém explorou antes de si. Mas não estou, neste artigo, nesta manhã do dia do trabalhador, para me ficar apenas pela homenagem ao antigo comentador da RTP.
A verdade é que na força da técnica, trabalhada como habilidade que se treina sobre as condições físicas que cada atleta apresenta, reside também a técnica da força, porque o trabalho de melhoramento das suas condições coordenativas iniciais é a forma de aprimorar a diferenciação entre os jogadores que atingem palcos elevados e os outros.
Não havendo uma sem a outra no campo de futebol, a condição essencial do jogo ficou mais próxima de ser alcançada. Porque não partindo de um ponto perdido no mapa, a conjugação da experiência daqueles que se envolvem no jogo ao longo de décadas, transmitida a par e passo em estruturas de partilha de conhecimento que são essenciais para a construção de uma cultura de jogo num determinado território, só pode ficar mais rica através da utilização de ferramentas que valorizam o entendimento de cada coisa que nos é apresentada por jogadores dentro de campo.
Isto dito, a força da técnica e a técnica da força acabam por se mesclar entre si, funcionando numa espiral de melhoria da qualidade técnica daqueles que apresentam as capacidades para o jogo, ao mesmo tempo que os defende, através do trabalho cuidado da sua estrutura humana, das cada vez mais violentas condições em que o jogo é praticado, pelo número de jogos e pela velocidade e resistência exigidas por este. A sua mescla resulta, também, no reconhecimento científico da importância da inteligência para se jogar o jogo. Porque entre malandros e caceteiros, aquele que se salva é, sem espaço para dúvidas, sempre o que é mais inteligente.