Quando nos aproximamos do final da temporada, com a definição dos diferentes campeões pelas várias ligas europeias, desenham-se elevados elogios para os vencedores. No entanto, para impedir o prolongar de certas injustiças, o discurso da análise do jogo precisa de ser reinventado.
Para se ser campeão, alguma coisa bem feita se terá feito. É bom que não nos esqueçamos disso. De uma forma geral, para alcançar o título, terá sido necessário ser melhor do que os restantes concorrentes durante mais tempo. Melhor a somar pontos ou melhor na definição de um resultado que, eliminatória após eliminatória, permita uma equipa avançar até ser campeão.
No entanto, ser campeão não é sinónimo de se ser uma grande equipa ou de se ter realizado um grande trabalho no que toca ao desenvolvimento do jogo. Ganhar não oferece garantias de qualidade, não podendo ser esquecido o facto de a vitória acontecer sempre dentro de um ambiente fechado. É o contexto de cada campeonato, de cada taça, de cada jogo, que define vencedor e vencido, protegido de uma análise macro ao trabalho realizado.
Socorro-me, hoje, de uma entrevista ao escritor Rui Nunes publicado no boletim Esteiro, de março de 2018.
Um elogio pode funcionar como um constrangimento. Porque quem começa não começa um génio; não sei, não gosto da palavra génio nem acredito neles, ele pode ter escrito um livro razoável, mas é muito raro que tenha escrito uma obra-prima, e ao transformar um livro meramente razoável numa obra-prima está a dizer-se ao escritor que não vale a pena fazer de outra maneira, porque já se atingiu a perfeição, e isso é de uma perversidade extrema.
Significará isto que devemos conter os elogios aos campeões? Não necessariamente. Mas deixa um claro aviso sobre a forma como cada elogio deve ser encarado quando, no jogo seguinte, no campeonato seguinte, for necessário pesar as qualidades de uma equipa, de um treinador ou de um jogador no conseguimento do jogo.
Olhemos para o caso do encontro entre Sporting e Benfica no último sábado. Em campo, dois treinadores campeões, duas equipas na luta por entrar na Liga dos Campeões da próxima temporada. Ambas as equipas chegaram ao final da temporada sem sinal de uma ideia para o jogo que jogam. A dimensão coletiva de cada equipa encontrou-se perdida perante a necessidade de atuar no contexto da conquista dos pontos.
Que garantias oferecem o facto de se ser campeão, se não na dimensão mais fechada possível de ter sido capaz de superar os adversários num calendário fechado? A perversidade chega com largos sorrisos no dia em que achamos ter provado a vitória.
O jogo enquanto espaço de revolta
Torna-se, então, imprescindível, que o discurso se modifique para que o jogo se eleve enquanto espaço de revolta. A procura das ideias dentro do terreno de disputa, o entendimento sobre o reflexo do trabalho das equipas, a dimensão mais completa do que é a criação de uma equipa necessita ser colocada como prioridade para quem analisa o jogo.
Precisa o analista de entender bastante mais do que de futebol. Porque o contabilizar de golos e pontos não é suficiente para explicar a dimensão total do que acontece no jogo. Precisa de entender a inteligência coletiva e individual que vive em tensão dentro do jogo. Tem que procurar as diferentes dimensões que colaboram para unidade do conjunto. Terá, ainda, que descobrir como o comunicar de uma forma efetiva para quem o acompanha na experimentação do todo.
O discurso é inseparável da intervenção. Mas a intervenção tem que encontrar, tal como a literatura, as palavras não gastas. Uma óptima intervenção com suporte de uma palavra fraca não chega onde deve chegar. É preciso reinventar o discurso. Para alertar as pessoas para a justiça e a justeza desse mesmo discurso.
Isto é tão válido para quem está dentro como fora do jogo. Discurso e intervenção são uma constante da análise na via da comunicação, tal como o são na via técnica do mesmo. Cada treinador poderá influenciar positivamente o desenvolvimento desta cultura, porque entende que o seu trabalho não passa, apenas, por desenhar exercícios ou definir estratégias. Dentro da equipa, o treinador sabe de tudo o que está envolvido nas suas decisões. Tem que ser revolucionário na forma como o faz e na forma como o transmite.
Onde nos deixa isto, a nós, cooperantes para o entendimento do jogo estando no território da análise? Oferece-nos a responsabilidade de desenvolvermos conhecimento sobre aquilo que acontece no jogo, ao mesmo tempo que nos permite a oportunidade de podermos inovar na forma como o fazemos. Caminhar para a uniformização do entendimento não é via que esteja, sequer, aberta. O jogo pede-nos bem mais, pede-nos tudo aquilo que tenhamos para oferecer.
Para uma leitura da entrevista completa de Rui Nunes, de onde são retiradas as citações deste artigo, visite a página do boletim Esteiro.
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