Cresci a ouvir histórias que se passaram no Café do José Inácio, na Serra da Vila, que incluíam corridas para ser o primeiro a ler o jornal desportivo e os jogos do Mundial de 66, conturbadas memórias entre os tempos da rádio e os primeiros da televisão, que faziam essa aldeia parecer tão distante de Liverpool (nem se conhecia bem Lisboa, a 50 quilómetros dali, quanto mais Liverpool), quando Eusébio marcou os quatro golos da vitória de Portugal sobre a Coreia do Norte a 23 de julho. Não sei se nessa noite se conseguiu dormir naquela aldeia, ou se o coração ficou a bater por se imaginar, um dia, numa qualquer Liverpool deste mundo, a marcar um golo parecido que fosse.
Em 1986, Portugal sonhava de novo, já eu era nascido, virgem que ficara de um 84 que, por ser demasiado pequeno, não me havia tocado, a viver os jogos no quarto, a pensar na escola do dia seguinte, enquanto Carlos Manuel, não satisfeito por ser o herói de Estugarda, se tornou, também, o herói de Monterrey, na vitória portuguesa sobre a Inglaterra. Estou certo que, por causa desse golo e desse jogo, muitas cabeças ficaram acordadas noite inteira, mas aquilo que se passou depois, ou o sofrimento marcado que foi esse jogo (coisa que percebi quando, já adulto, o revi mais do que uma vez), talvez tenha ajudado a apagar a importância dessa vitória. Mas que ela existiu, disso não hajam dúvidas.
A Seleção só voltou a jogar um Mundial já eu era maior de idade, naquelas tristes manhãs de 2002, apenas refrescadas pelos três golos de Pauleta à Polónia. Emoções a sério, vivi-as a 1 de julho de 2006, quando aquele jogo com a Inglaterra, que parecia não mais terminar, nos voltou a sorrir no desempate por penáltis. Há poucas semanas, lembrava os jogos de Portugal e marcava esse dia como aquele que tinha ficado mais fortemente marcado na minha memória como um grande jogo de Portugal. Não apenas no que se passara em campo, mas na forma emocional como o vivi, como explodi de alegria no final. Pensava eu, agora que trabalho nisto, que não mais me voltaria a perder por um jogo, porque depois dele vieram mais dois mundiais fracos para a memória, e nem o título europeu me levou a perder as estribeiras.
Não levava eu em conta que o 15 de junho de 2018 pudesse acontecer. Semanas a ser dos poucos que dava algum crédito às hipóteses de Portugal neste primeiro jogo (tenho o Hernâni Ribeiro e o Tiago Estêvão como testemunhas), a minha crença partia mais da menor responsabilidade que o jogo nos impunha. Nem sequer colocava como possibilidade, também, deixar-me perder por um jogo da seleção, com tantas coisas que me andam na cabeça, com tantos jogadores, tantas equipas, que por estas últimas semanas foi preciso estudar a fundo. O golo quase a abrir a partida veio-me sossegar. Eu parecia estar certo.
Mas depois apareceu Diego Costa. O que pode um ser humano esperar de alguém que veste a pele de vilão e nos surpreende? O bom e velho Diego Costa que não dá uma bola por perdida. A Espanha que acordava para a sua dinâmica de passe e que escondia as tibiezas defensivas impedindo que Portugal passasse do meio-campo. Sim, eu estava a ficar nervoso, contra todas as expetativas. O golo antes do intervalo, com sabor a deslize de De Gea, não me sossegou. Estavam demasiadas coisas a acontecer. Diego Costa voltaria. Portugal não se soltava. O jogo enrolava-se de tal maneira que Nacho, esse mal amado central tornado lateral-esquerdo que aparecia, aqui, a lateral-direito, conquistava o direito ao seu momento de glória a colocar a Espanha, pela primeira vez, na frente do marcador.
Mas a equipa de Fernando Santos, independentemente do estilo, tem hoje uma marca que se cheira a distâncias ainda maiores do que aquelas que separavam a Serra da Vila e Liverpool nos anos sessenta. A marca de poder levar seja que jogo for até ao fim. E, para que isso seja indesmentível, Cristiano Ronaldo anda dentro de campo, farejando a oportunidade para voltar a estar no centro do universo. Os últimos vinte minutos foram de sofrimento. Portugal que não conseguia tomar conta do jogo, Espanha que ameaçava um quarto golo. Até que chegou aquele livre. E quanto tempo demorou entre a falta até que Cristiano rematasse a bola? Uns bons séculos, entre a respiração profunda, o encontrar da postura certa, o árbitro que alinhava a barreira e voltava a medir distâncias, os vizinhos que gritaram no café da rua ao lado, o salto que eu dei mesmo já sabendo que era golo, queria lá saber, que este era um golo de uma outra estirpe.
O Cristiano Ronaldo é um herói do seu tempo, do meu tempo. Este jogo, acidentado, rochoso, com momentos de classe e agressividade no limite, com erros e imperfeições e desencontros com a ciência da previsão, é o jogo com o qual eu vou continuar a lutar. Ontem, ganhou-me. Ganhou-me porque me voltou a fazer sentir pequeno, insignificante, perante o enorme poder das coisas simples. Ganhou-me porque me levou o sono, já tão escasso estas semanas. Ganhou-me porque se me marcou na pele.
Não há nada mais que eu possa dizer. Obrigado, futebol!