Luís Cristóvão

Carta a Jorge Valdano

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Olá Jorge,

(permite-me que te trate assim, sem reverências, sobretudo pelo imenso respeito que tenho por todo o pensamento que desenvolveste sobre o futebol)

hoje é domingo, um dos poucos dias deste mês sem futebol para ver e viver, mas, olha, defeito de fabrico meu, só pode ser, dou por mim a pensar no jogo, a pensar nas coisas que escreves, a sentir como tenho o que discutir contigo.

Foi o texto que publicaste há uma semana atrás no The Guardian e que só agora pude ler que me leva a escrever-te esta carta, não na esperança que tu a leias, porque eu sei bem que todas as coisas são incontroláveis, olha, como aquele dia em que, sem esperar, te pude cumprimentar à entrada de um estúdio de televisão, num daqueles acasos da sorte de que a vida, tal como o futebol, está cheio.

O título do teu artigo é enganador, bem sei, porque no teu texto falas de tecnologia e algum editor, talvez pela contagem de caracteres, achou por bem substituir “tecnologia” por “ciência”, pois é, como se fossem, se quer, coisas vagamente parecidas. Porque, e tu estarás de acordo comigo, porque já viveste e já leste bem mais do que eu, que a ciência não é nada daquilo que lhe querem colar. Verdade, ao ler o teu texto, se há coisa que tu defendes é a existência de uma ciência, a dos jogadores de futebol, por aquilo que eles sabem e não sabem que sabem, a sua vivência, que só através da ciência pode ficar demarcada.

É isso mesmo. Se há coisa sobre a qual todos podemos estar de acordo é que associado ao futebol, como a todas as coisas da vida, há uma ciência. Essa ciência que, tal como o futebol, é emocional, porque nasce de um instinto que reconhece que algo não bate certo no que nos querem vender por certo, que é contraditória, porque é algo que está sempre em evolução, sem certo nem errados, sempre passível de contra-prova, e que é, fundamentalmente, anti-primitivo. Não me vendem essa história do futebol ter vindo de um passado romântico porque o jogo é, na sua essência, uma guerra da qual se escapa, lá está, pelo intelecto, pelo pensamento próprio ao jogo, pela capacidade de, enquanto homens, sermos mais fortes do que as eventuais armas que nos querem pôr nas mãos.

Depois, deixa-me que te diga, se há coisa que eu compreendo mal é essa aproximação do futebol à arte, como se a arte nascesse nas árvores e fosse fruto de expressão natural de sentimentos de quem a produz. Será, sim, quando é má. Mas, a arte verdadeira, é um artifício, uma habilidade astuciosa que se escapa à realidade, como alternativa ou, melhor, como construção de um mundo alternativo, que se constrói a partir do conhecimento de quem a produz (uma vez mais, a ciência), reflexionando nas necessidades que o próprio objeto lhe coloca. Dir-me-ás que os melhores entre os melhores do futebol caminham para uma expressão artística do mesmo, e isso, bem sabes, é algo com que concordarei. Mas esses melhores só são melhores porque sabem muitas coisas (incluindo essas tantas coisas que ainda sequer sabem que sabem).

Por isso, amigo Jorge, juntemos as nossas forças para conter a expressão dos maus cientistas, dos maus leitores de tecnologias, dos maus futebolistas, dos péssimos jogadores que querem fazer do jogo o seu quintal, sem espaço para a expressão da natureza evolutiva do jogo. Juntemos as nossas forças, até, para assumirmos como as nossas emoções, as nossas contradições, a nossa sede de verdade se possa encontrar sempre em permanente vida dentro do jogo que amamos. Mas não gastemos energia com aquilo que é um fantasma que se impõe como capa de quem quer ver o jogo. Não nos iludamos com coisas que pouca importância tem.

Traz uma bola, Jorge. E eu fico aqui a deleitar-me a criar equações e ideias filosóficas sobre a arte que te nasce dos pés.

Um abraço,

Luís.

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