No futebol sempre se passou de bestial a besta em noventa minutos, aliás, é essa velocidade furiosa das sensações que tornou o jogo tão apetecível para tantas gerações em tantos lugares do mundo. Mas aquilo que seria bom não esquecer, nesta época de excessos de análise e comentário, é que o futebol continua a acontecer no corte temporal dos noventa minutos.
Demasiadas vezes somos levados a pensar que as regras do jogo se alteraram. A figura do treinador mediatizado entra em campo logo a ganhar um a zero. Separar-se o pensamento teórico de uma habilidade essencialmente prática (o jogo de futebol), faz-nos esquecer que o cérebro, para ter sucesso no jogo, precisa de ter pernas e pés e coordenação motora. É a confusão entre o comentador e o treinador. Se de um lado a exigência é fundamentalmente teorizar sobre o evento que se viu (o jogo, os jogos, os seus subsequentes dados), do outro, consultadas todas as teorias, fica-se perante a exigência prática de operacionalizar um jogar. Da mesma maneira que ninguém quer saber o que o comentador faria se estivesse no lugar do técnico, não é a comentar o jogo que um treinador melhor expõe as suas qualidades.
Por isso mesmo, muito mais importante do que definir influências, importa perceber, pelo discurso, a dimensão aproximadora da prática. Nunca me esqueço que Luís de Camões tanto inspirou Fernando Pessoa como o Zé das Rimas que abotoa piropos na esplanada do café. Da mesma maneira que aquilo que temos de aprender de Pep Guardiola é a forma como ele gere e acrescenta conhecimento na sua proposta de jogo, em detrimento de sublinhar e repetir frases que ele tenha dito. Nenhuma equipa de Pep Guardiola conquistou algum ponto com uma frase na área do adversário. As melhores influências estão no ato revolucionário de testar o jogo, dentro do jogo.
Esquecer tudo aquilo que foi dito é, no entanto, uma missão impossível. Quando perante práticas inconsequentes, valemo-nos do discurso pré e pós jogo para uma espécie de desempate por penáltis. O treinador que é goleado mas que afirma a sua identidade em construção. O treinador que perde em casa frente ao rival mas “culpa” o rival por uma abordagem limitada ao jogo. É bom que se construam caminhos processuais para definir o jogar (diria, mesmo, que é essencial), mas é ainda melhor não esquecer que a forma de respirar na competição é obter pontos e vantagens (não vou ser uma grande pessoa durante muito tempo se ignorar aquela coisa do inspirar e expirar). Daí que o global seja, sempre, uma conjugação de diferentes particulares a serem convocados consoante a estrada que temos pela frente.
O mesmo se aplica às filosofias adoptadas pelos clubes. Num interessante artigo no El País, Ramon Besa explora a transformação da herança de Johan Cruyff de pensamento em betão. O nome e as frases do holandês vão tomando as paredes, festejam-se através de ações episódicas em campo, mas não são mais o “Cruyffismo” que, mais do que a filosofia, precisava de uma ação prática concreta – incómoda, desafiante, tantas vezes errando para chegar ao acerto. Daí que se entenda que a evolução do conhecimento se faz, exatamente, através dessa precariedade da imperfeição. Só aquele que erra, que duvida, que coloca em causa, está, de facto, a utilizar o cérebro para chegar mais longe. Sabendo andar com os pés que tem, para não cair.