“Joana e Luís entram num café (ou melhor, num Google doc)” – é este o mote para o presente artigo que dá seguimento à conversa iniciada no blog do Luís Cristóvão. tudo começou com um tweet sobre expressões típicas do futebol que serviu de base à gravação do episódio #14 d’ O Brinco do Baptista. vai daí, eu e o Luís abrimos um Google doc para falar de filosofia e futebol. não sabemos onde estas conversas nos vão levar, mas para já gostaríamos de partilhá-las convosco.
Um pontapé de saída
[Joana] Oiço muitas vezes comentários sobre a indecifrabilidade de alguns conceitos filosóficos ou até dos textos dos filósofos; se eu me sinto como peixe na água (depois de muito treino, é certo) com a escrita de um Kant ou de um Tomás de Aquino, a verdade é que a linguagem futebolística permanece enigmática para mim. Quais são os conceitos fundamentais do futebolês?
[Luís] Eu diria que o fundamental é entender que a utilização de conceitos numa qualquer área de especialidade carece de bastante tempo de treino. No caso do futebolês, essa ideia parece ser muitas vezes ignorada, ainda que esse treino aconteça, como é óbvio, em convívio intenso com o fenómeno desde tenra idade. No entanto, tal como na filosofia ou na literatura, o meio onde te educas vai influenciar fortemente a tua capacidade de utilização de conceitos. Por isso, hoje em dia, poderás entender algum choque (e, por vezes, até incompreensão), entre aqueles que cresceram num meio de futebolês mais genuíno, os que o passaram pelo filtro académico, os que o utilizam com um cuidado com a linguagem mais próximo dos intelectuais. Foi uma luta que sempre existiu mas que, talvez, na última década se tenha tornado mais intensa, porque passou para dentro de campo. Hoje em dia, mesmo entre os treinadores e os jogadores, há quem tenha vivido essas diferentes experiências. Mas, para responder curto e grosso à tua pergunta, conceitos fundamentais do futebolês são (e serão sempre) a bola e a baliza.
[Joana] Eu brinco com a expressão fora de jogo porque na verdade o fora de jogo acontece dentro do espaço do jogo. Mas não gozes comigo, pois eu sei que estamos a falar de fora do jogo jogado e não das quatro linhas. Já a questão da falta até parece contraditória, vá, pois remete para algo que foi feito em excesso. Uma falta é algo que se fez a mais, que não se deveria fazer.
[Luís] Errado. Em muitos casos vais ouvir dizer que se tratou de uma “falta necessária”, uma “falta tática”, uma falta que era a única opção do jogador X. A falta faz parte do jogo (uma parte das pessoas que leiam isto vão-se rir, porque se irão lembrar de uma polémica onde me envolvi com este mesmo tema) (olha para onde tu me trazes). Dentro do espaço de jogo podes estar fora de jogo, dentro das posições que os jogadores escolhem para estar no campo podem acabar desposicionados ou desorganizados (conceitos táticos) e o teste das regras (as faltas, a demora a colocar a bola em jogo, etc) faz parte do jogo. O futebol e o futebolês, no que toca a linguagem e a experiência de vida, é uma constante medição de poder – daí o interesse que ele desperta em filósofos, em artistas, em intelectuais. O campo de jogo é um campo onde se simula a vida de uma forma muito intensa.
Bola, baliza e… GOLOOOOOO?
[Joana] Posso voltar atrás? Podes marcar-me falta por isso, não tem problema, mas queria só recuperar a ideia dos conceitos fundamentais da baliza: não serão bola, baliza e golo? Sem querer reduzir o jogo ao resultado, a verdade é que nós vamos ao estádio para ver a equipa ganhar. Os jogadores motivam-se para a vitória. O treinador trabalha com a equipa para fazer-isto-ou-aquilo-que-eu-não-sei-dizer e… Ta-DA! Marcar golo.
[Luís] Não existe jogo sem bola ou baliza. Mas o jogo antecede o golo e nem há uma necessidade de golo para que o jogo se realize por completo. Pode bem acabar zero-zero. Agora apontas um dado bem interessante, para mim fundamental. Colocas o adepto em primeiro lugar. “Vamos ao estádio para…”. Certo. Mas o leitor do texto filosófico acrescenta algo para o trabalho do filósofo? É para um leitor concreto que o filósofo constrói o seu artigo, a sua teoria? Consciente de ser, talvez, demasiado purista, retiro o golo dos conceitos fundamentais do futebol. Mesmo que, no final, seja o golo que decida vencedores e vencidos, o que acaba por dar algum nexo ao momento competitivo em causa. Mas há jogo antes do golo e há jogo sem golo.
Resultado ao intervalo
[Joana] 1-0, ganhas tu, Luís. O leitor do texto que um filósofo escreve é fundamental, pois o texto serve para o diálogo. Bem sei que não consigo, agora, dialogar com o Platão, mas consigo fazê-lo com o seu pensamento, registado nos textos que escreveu. Ok, este exemplo vai criar-me um problema: Platão escreveu, na Carta VII, que o mais importante não eram os textos, mas sim o legado que é transmitido de forma presencial, entre mestre e discípulo. Na falta dessa experiência, fica o texto. Havendo essa experiência, o texto pode ser algo secundário. Marcar um golo, no que à filosofia diz respeito, pode muito bem ser mudar de ideias, contrariar o autor que estás a ler (mesmo que seja O Platão), encontrar uma falha na sua argumentação ou ler aquele texto à luz de outros, de outro contexto, da tua experiência. O leitor não acrescenta algo ao texto, em tempo real; mas tem a possibilidade de marcar esse tipo de golos que referi.
[Luís] No futebol, o diálogo entre Platão e Sócrates acontece dentro de campo. De cada um dos lados, estão treinadores e as suas respetivas ideias. A forma como elaboraram estratégias, através do treino, para que os seus jogadores as pudessem colocar em prática. O espaço deixado aos jogadores de cada equipa para transformar as ideias em momentos de jogo e, sobretudo, para elaborar novas ideias num contexto que está em eterna mutação. Os melhores jogadores são aqueles que entendem os problemas que o jogo lhes coloca e os conseguem resolver. Depois temos o Messi e a sua capacidade para resolver problemas que ainda não existiam de formas que ainda não tínhamos visto. Ao adepto e ao analista, que estão fora desse diálogo, cabe-lhes, é certo, elaborar sobre o texto que ele cria. Acrescentam-lhe dimensões e sensações. E no fim, há o golo. Que não é essencial, mas que, quando acontece, é realmente transformador.
Podem continuar a ler esta conversa no site da Joana Rita Sousa.
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