Aos 25 anos, Luan Carlos é o mais jovem treinador do Brasil, como recentemente foi reconhecido pela Federação Brasileira dos Treinadores de Futebol. À frente do Uniclinic Atlético Clube, clube gerido pelo futebolista Ari, que atua no Lokomotiv Moscovo, a equipa terminou ontem a sua temporada, atingindo as meias-finais do Campeonato Cearense. Luan Carlos fala-nos do modelo de competição no futebol brasileiro, do projeto que leva a cabo no Ceará e das influências do seu trabalho.

Tão ou mais importante do que o talento que um treinador possa ter, são as oportunidades que acabam por definir a sua carreira. A primeira vez que conversei com o Luan Carlos, foi exatamente nisso que nos focámos. Em como a oportunidade de treinar uma equipa tão jovem acabou por criar um caminho natural para a sua evolução e o convite do Uniclinic, com o sucesso neste primeiro ano de trabalho, reforçavam o aspeto positivo das suas escolhas.

Estadual e um modelo competitivo de provação

O calendário de competições no Brasil precisa ser revisto. Temos boas competições, porém precisam ser geridas de forma mais profissional, precisam ser qualificadas através da realidade do futebol brasileiro.

A aproximação ao modelo competitivo do futebol brasileiro é sempre de uma grande dificuldade para quem o observa à distância. Mas, mesmo para quem está por dentro da tradição dos Estaduais, é muitas vezes complicado entender as vantagens deste modelo. O tamanho do país e a história da sua evolução em termos desportivos explica a importância de uma competição que se restringe ao seu aspeto regional. Para muitos treinadores, a ideia do Estadual no início da temporada poderia ser visto, no que toca ao seu trabalho, como uma antecipação da temporada, uma prova prévia, onde através de jogos cada vez mais exigentes as suas ideias se vão definindo.

No entanto, o quadro expõe as equipas a jogos de enorme desequilíbrio, com grande pressão das massas adeptas que olham os Estaduais como uma competição de nível máximo, praticamente ao nível do campeonato nacional. Isso transforma o que seria um período de adaptação e construção de uma equipa, numa competição antes do tempo, tendo em conta o pouco espaço oferecido para a pré-temporada (em relação ao Estadual) e a própria organização da prova.

Diversas equipes no Brasil vivem apenas do Estadual. Outras tantas vivem apenas das divisões inferiores do Estadual. Essa realidade é da maioria dos clubes em nossa País. Após o término da competição, elas param as atividades e esperam o ano seguinte. Por isso não conseguem ter sequência no cenário profissional.

O problema estende-se ainda ao facto de a grande maioria das equipas do Brasil jogarem apenas os campeonatos estaduais. Num país que é um enorme produtor de talentos futebolísticos, a temporada para a maioria das suas equipas tem um curto período de existência, entre janeiro e abril. A partir da próxima semana, apenas as equipas que estão nos campeonatos nacionais continuam a sua temporada, o que cria enormes problemas para a aquisição de uma continuidade evolutiva para grande número dos seus jogadores. Não espanta, por isso, o êxodo constante de talentos à procura de espaço para entrar no profissionalismo.

Oportunidades precoces

Tudo isso foi resultado de uma junção de trabalho. O futebol precisa ser visto sob a ótica do planejamento e organização. Foi isso que fizemos. Com meses de antecedência do campeonato já começamos a montagem do elenco, trazendo jogadores que se encaixariam dentro do nosso Modelo de Jogo, respeitando a realidade cultural do Clube e, também dos atletas.

O Uniclinic terminou ontem a sua prestação no Campeonato Cearense, onde atingiu as meias-finais, sendo eliminado pelo Ceará, equipa da Série A do futebol brasileiro. O Uniclinic, clube gerido por Ari, futebolista do Lokomotiv Moscovo, começou a temporada com o objetivo da manutenção na divisão principal do estadual, mas termina com o apuramento para entrar nos campeonatos nacionais em 2019, onde jogará a Série D.

Uniclinic derrotou o Ceará, por 1 a 0, no segundo jogo da semifinal do Campeonato Cearense (Foto: Kid Júnior / Agência Diário)

Aos 25 anos, Luan Carlos aproveitou uma oportunidade que não muitos técnicos têm no Brasil. Beneficiou de tempo para preparar o seu plantel e trabalhar um modelo de jogo pensado para a competição a enfrentar, encontrou as condições de trabalho ideias para o realizar e vencendo as dúvidas que se impunham a uma equipa sem presença no futebol nacional, alcançou resultados acima dos objetivos.

Ser visto como um estudioso gera preconceitos, pois nos rotulam como teóricos e nada mais. Porém o conhecimento científico vem ganhando espaço no futebol brasileiro, e tento mostrar a todos que estudar é algo essência não só para os treinadores, mas também para atletas. Por isso meu grupo aprendeu a estudar. Estudaram adversários, estudaram variações táticas, estudaram sobre alimentação, sobre sono, sobre tudo. Sou um treinador estudioso que comanda atletas estudiosos.

O seu percurso transforma-o num técnico que é visto como pertença ao “grupo dos estudiosos”, numa análise que ainda coloca em trincheiras diferentes os treinadores de base científica e os de base empírica. Uma discussão que não faz muito sentido se olharmos à forma como tantos jogadores brasileiros se adaptam às novas exigências do futebol em outros contextos. Por isso mesmo, é inegável que o atual momento do futebol brasileiro é muito interessante na forma como coloca sobre o tabuleiro uma série de fatores decisivos: o talento dos jogadores, a sua ambição de profissionalismo, o crescente entendimento das equipas técnicas sobre as necessidades de trabalho numa equipa de futebol. Encontrar um treinador que coloca o estudo como uma das bases do sucesso de trabalho de todos na equipa (treinadores e jogadores), é um modo novo de entender por onde se fará a evolução.

Finalmente, Luan Carlos é também um dos técnicos que reconhece a influência dos trabalhos de pensadores portugueses na sua prática. Júlio Garganta é um dos nomes citados na forma de entendimento do jogo que começa a fazer caminho no Brasil. O sucesso de treinadores como Luan Carlos e equipas como o Uniclinic será o trampolim para que maiores contactos existam entre o futebol dos dois lados do Atlântico.

Entrevista completa com Luan Carlos, treinador do Uniclinic Atlético Clube

-Tendo em conta que está numa equipa que conseguiu um percurso de alguma surpresa num Estadual, como analisas o calendário competitivo brasileiro? Que impacto tem na equipa uma competição como o Estadual e como isso influi na preparação da competição nacional que se segue?

O calendário de competições no Brasil precisa ser revisto. Temos boas competições, porém precisam ser geridas de forma mais profissional, precisam ser qualificadas através da realidade do futebol brasileiro. Infelizmente não temos uma Liga que defenda os interesses dos clubes, então as instituições ficam à mercê da CBF e de suas imposições. Temos um País rico e com potencial altíssimo para fazer futebol de qualidade, porém mal explorado. Os Campeonatos estaduais são parte de uma tradição do nosso calendário. Somos um País, territorialmente, muito grande, o que permite a realização de competições estaduais muito interessantes e bem disputadas. O Campeonato Estadual é o “cartão de visitas” do ano competitivo que se inicia. Sua fórmula de disputa e seus atrativos podem ser revistos, fazendo com que o mesmo proporcione um seguimento mais sólido para as equipes de menores investimentos que ainda não possuem calendário em competições nacionais.

-Para uma equipa que joga apenas Estadual, como se vive o próximo período? Vai manter os treinos? Vai parar? Até quando?

Diversas equipes no Brasil vivem apenas do Estadual. Outras tantas vivem apenas das divisões inferiores do Estadual. Essa realidade é da maioria dos clubes em nossa País. Após o término da competição, elas param as atividades e esperam o ano seguinte. Por isso não conseguem ter sequência no cenário profissional. Outras equipes que vivem essa realidade, tentam investir em suas categorias de base, buscando a formação de atletas e mantendo um trabalho anual, na busca de calendário nacional. Esse é o caso do Uniclinic, que por ter alcançado a semifinal do Campeonato estadual, garantiu a vaga no Campeonato Brasileiro da Série D.

-O Uniclinic entrou no Cearense pensando na manutenção, mas atingiu as meias-finais. O que terá influido mais no conseguir este resultado tão positivo? O apoio dos donos do clube? O trabalho estratégico? O talento dos jogadores?

Conseguir a vaga nas semifinais e a classificação para uma competição nacional foi um grande feito para o Clube. Tudo isso foi resultado de uma junção de trabalho. O futebol precisa ser visto sob a ótica do planejamento e organização. Foi isso que fizemos. Com meses de antecedência do campeonato já começamos a montagem do elenco, trazendo jogadores que se encaixariam dentro do nosso Modelo de Jogo, respeitando a realidade cultural do Clube e, também dos atletas. Com as boas condições estruturais oferecidas pelo Clube, coube a nós da comissão técnica planejar um método de trabalho pautado no Jogo que pretendíamos alcançar. Com isso desde a primeira sessão de treinamento já fomos apresentando nossas ideias, e assim criando comportamentos coletivos com nossa equipe, tentando transformar cada comportamento em hábitos, valorizando cada atleta dentro do processo e sempre dando ênfase no entendimento de que a essência do jogo é o jogador. Com isso formamos um modo de jogar muito interessante, os atletas absorveram bem as ideias e conseguimos deixar o jogo menos aleatório e menos imprevisível, dando autonomia aos atletas para realizar as ações. As sessões de treino foram fundamentais pra isso. Cada treino era parte fundamental do jogo. Não foi por acaso que alcançamos esse grande feito. Nada é por acaso, nem no futebol, nem na vida.

-És um dos treinadores mais jovens a liderar uma equipa profissional, como acontecem as coisas ao nível do relacionamento? É difícil conquistar um grupo quando és visto como um estudioso do jogo?

Fico muito feliz por conseguir me manter no futebol profissional mesmo com a pouca idade. Sei como é difícil ser treinador de futebol no Brasil, a instabilidade é enorme e as cobranças também. Mas só aceito os desafios pois acredito que estou preparado para encará-los e vence-los. Essa preparação é constante, diária. Digo sempre que a melhor forma de conquistar respeito dos seus comandados é acima de tudo os respeitando. Isso é primordial. O respeito é uma via de mão dupla. Se queres ser respeitado, respeite antes de tudo. Então respeito muito cada atleta. Outra forma de garantir o respeito e o comando é mostrando segurança no que faz e fala. Por isso o atleta precisa olhar pra ti e enxergar alguém que tem domínio do que faz. A melhor forma de motivar um jogador é trazendo diariamente conteúdos que os façam evoluir na profissão. Tento fazer sempre isso. Dou muita liberdade aos meu atletas. Liberdade para trocarem ideias e discutirem opiniões. Isso é importante, pois essas discussões geram conhecimentos. Assim produzimos juntos ideias, concretizamos com uma execução inteligente da forma de jogar. Os atletas precisam entender do jogo, precisam ser autônomos na tomada de decisão, precisam pensar e não só executar. Por isso que nas minhas sessões de treinamento os atletas não são apenas peças de execução, eles também pensam e colaboram para a construção do nosso jogar. O jogador que pensa o jogo é capaz de decidir partidas. Por isso investimos muito nisso. Ser visto como um estudioso gera preconceitos, pois nos rotulam como teóricos e nada mais. Porém o conhecimento científico vem ganhando espaço no futebol brasileiro, e tento mostrar a todos que estudar é algo essência não só para os treinadores, mas também para atletas. Por isso meu grupo aprendeu a estudar. Estudaram adversários, estudaram variações táticas, estudaram sobre alimentação, sobre sono, sobre tudo. Sou um treinador estudioso que comanda atletas estudiosos.

-Li em outras entrevistas tuas que procuras estudar e seguir muitas ideias do futebol europeu. Fala-me um pouco dessas influências e quais as principais dificuldades para transpor conceitos do futebol europeu na realidade do futebol brasileiro?

Gosto muito do que se produz no futebol europeu, principalmente no futebol português. Gosto muito do professor Júlio garganta, é um mestre que busco seguir como exemplo. Os conceitos e ideias do futebol europeu são interessantes e ricos. Aqui no Brasil criam ainda uma barreira quando se fala sobre tática e periodização. Muitos ainda acham que é invenção. Infelizmente é uma triste realidade. Mas não concebo a ideia de falar de futebol sem falar de tática, até porque esse é um jogo essencialmente tático. Confundem muito esse conceito de tática. Tática não é o que enrijece os atletas em campo por posição, pelo contrário, tática são comportamentos, são ações, são elaborações para que os atletas sejam mais eficazes dentro do jogo. Estou atento a tudo que se passa em Portugal, tento absorver muita coisa e aos poucos vou me qualificando e acrescentando na minha rotina de trabalho. Tenho um longo caminho a seguir, quero muito alcançar meus objetivos, e sei que isso só será possível através do conhecimento.

 

Agradecimento ao Gabinete de Imprensa do Uniclinic Atlético Clube.

Publicado por Luís Cristóvão

Comentador na Antena 1, Eleven Sports e SIC Notícias. Analista de futebol, fala e escreve sobre desporto em vários meios de comunicação social.

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1 comentário

  1. Bela entrevista.
    Questionamentos pertinentes e uma fonte interessante, nova. Bacana ver pelos olhos de um treinador jovem como o Carlos, os preconceitos existentes com relação as evoluções no futebol.

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