Encerrada a temporada 2017/18 no campeonato português, o Desportivo de Chaves de Luís Castro é o conjunto que terá vivido um processo mais cimentado de construção de uma ideia de jogo, propondo a equipa técnica um desafio aos seus jogadores que estes, não só adotaram, como encontraram nele forma de se valorizar ao longo da mesma temporada. O sexto lugar deixa-o às portas da Europa, caminho para onde se deverão dirigir uma parte dos elementos que fizeram parte da equipa.
Na sua vigésima temporada como treinador de futebol, Luís Castro terá tido a sua melhor época, aquela que encerrou, em si, toda a completude de um processo, com as suas vias positivas e negativas, que permitem entender como criar uma ideia de jogo para uma equipa de alto rendimento é um caminho não linear por muitos altos e baixos ao longo de um conjunto de meses.
Penafiel, onde se estreou na Primeira Liga há treze anos atrás, foi o primeiro sinal da qualidade de trabalho deste técnico, que abraçou, posteriormente, um desafio de repensar toda a estrutura de formação do FC Porto, liderando esse processo, pegando na equipa B e surgindo com uma oportunidade na equipa principal, como interino, na época de 2013/14. A época passada, voltou a sair dos azuis e brancos para pegar no Rio Ave, onde terá testado boa parte das ideias que, esta época, fez abraçar pela equipa do Desportivo de Chaves.
Processo de Aprendizagem: ilações da experiência
O cérebro do leitor aprende primeiro cada letra da linguagem, gerando uma função que permite identificá-la. Quem começa a ler pronuncia uma letra como se fosse em câmara lenta. Ao fim de muitas repetições, o processo automatiza-se; […] No final do processo de leitura, o leitor forma no seu cérebro uma função capaz de extrair a palavra como um todo.
A obra de Mariano Sigman, A Vida Secreta da Mente, propõe-nos uma profunda reflexão sobre as perguntas que podemos, continuamente, colocar às funções e realizações do cérebro humano. No capítulo em que fala do processo de aprendizagem sobre a leitura, encontro muitos pontos que vão soar aproximados ao processo de aprendizagem de um modelo de jogo, de uma forma de jogar.
Tal como o processo de formação de jogadores, também os processos de aprendizagem da leitura têm sido, ao longo do tempo, expostos a diferentes teorias, com a cada vez mais desenvolvida investigação sobre o cérebro humano a permitir-nos, hoje em dia, perceber modos de funcionamento que vão para além de visões ideológicas.
Vive-se, no cérebro, o chamado processo analítico de aquisição de competências, olhando para a palavra como um conjunto de letras, que se vão apreendendo individualmente, pronunciando a palavra num ritmo lento, muitas vezes, até chegarmos à sua automatização. Este desenvolvimento permite-nos o domínio de cada pormenor de um processo que, no seu final, vai permitir ao adulto “extrair a palavra como um todo”.
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À mesma imagem, o trabalho de Luís Castro no Desportivo de Chaves precisou de encontrar essa forma de fazer o caminho, identificando as qualidades individuais dos seus jogadores, desafiando a conjugação dessas características com as ideias propostas pela equipa técnica, encontrando formas de conciliar os processos de confiança própria dos jogadores com as tensões naturais da competição.
[…] o talento de quem começa a estudar é muito pouco preditivo de quão boa essa pessoa vai ser depois de muitos anos de aprendizagem. Agora percebemos porquê. […] Em França, com base em que os leitores proficientes leem palavra a palavra, um grupo concluiu – erradamente – que a melhor forma de ensinar é a leitura holística, na qual em vez de começar por identificar sons de cada letra, se começa lendo palavras inteiras, como um todo. Esse método foi um êxito de difusão, entre outras coisas, porque tinha um bom nome. […] Mas foi um desastre pedagógico sem precedentes, que teve como resultado muitas crianças com dificuldades de leitura. E com a tese que esboçámos aqui compreende-se por que razão o método holístico não funciona. Ler de uma forma paralelizada é o estádio final a que se chega construindo as funções intermédias.
Os resultados das primeiras jornadas poderão, no final das contas do campeonato, ter impedido que a equipa alcançasse o objetivo do apuramento europeu. Mas o trabalho num coletivo não deve ser analisado desta forma. O processo de formação de competências dentro de um modelo, é um processo longo e continuado, tão enriquecido pelos momentos de sucesso, como pelos momentos de insucesso.
A ausência de um reforço positivo através dos resultados levou a um questionamento de equipa técnica e jogadores, o que acabou por reforçar o entendimento do percurso a fazer. A equipa precisou de entender as falhas, reconhecer as dificuldades, para apontar as respostas precisas para a sua evolução. Se bem que, do ponto de vista competitivo, o Desportivo ficou em sexto lugar e não em quinto, o tal objetivo, dificilmente poderia chegar mais longe no que toca ao reconhecimento da qualidade do grupo de treinadores e jogadores que trabalharam esta temporada em Chaves.
Ensino, formação de cultura e auto-aprendizagem
[…] compreendemos que, em muitas circunstâncias, difundir conhecimento pode formar grupos com recursos que conferem uma vantagem aos indivíduos. Esses são, em geral, os argumentos típicos para compreender a evolução de comportamentos altruístas e uma razão utilitária para entender a génese da comunicação humana. Ensinar é uma forma de cuidarmos de nós mesmos. O livro foi pensado em redor da ideia de que a propensão para partilhar conhecimento é uma característica individual que faz com que, indefetivelmente, nos reunamos em grupos. É a semente da cultura. Armar tramas culturais em pequenos grupos, tribos ou coletividades faz com que cada indivíduo funcione um pouco melhor do que funcionaria isolado. Transcendendo essa visão utilitária da pedagogia através do valor da cultura, apresento aqui uma segunda hipótese: ensinar é uma maneira de conhecermos não só as coisas e as causas, mas também conhecermos os outros e conhecermo-nos a nós próprios.
Outra das características da equipa técnica liderada por Luís Castro é a distribuição dos seus recursos com vista à formação de uma cultura que permita a formação de uma comunidade. O técnico respondeu, ao longo da temporada, às entrevistas realizadas pela Tribuna Expresso e pela revista The Tactical Room. Um dos seus adjuntos, Vítor Severino, tem presença ativa nas redes sociais e explora a ideia da criação de grupos que visem um entendimento cada vez mais aprofundado do seu trabalho. Filipe Cellikaya, um dos analistas, é presença assídua em ações de formação.
O Desportivo de Chaves de 2017/18 vai muito além daquilo que é, apenas, uma equipa de futebol. As ideias fermentadas ao longo dos anos nos escalões de formação do FC Porto permite, nos nossos dias, ver um FC Porto B de António Folha, que também foi adjunto de Castro, florescer como uma das equipas mais interessantes em solo nacional. Pela rede, exploram-se estudos da forma de jogar dos flavienses, analisam-se as palavras dos técnicos, repensa-se a forma de pensar e entender o jogo por causa da disponibilidade dos homens que lideram este processo.
É, provavelmente, a lufada de ar mais fresco que atingiu Portugal nos últimos anos. Muito para além daqueles que, revolucionando o treino ou o jogo, o fizeram sob o princípio de ter amadurecido uma ideia ao ponto de a poder cristalizar como princípio inabalável, Luís Castro, Vítor Severino, Filipe Cellikaya e companhia, trabalham para aprender na forma como continuam a trabalhar de portas abertas à curiosidade de entender o jogo como se entende o mundo. À procura daquilo que se continua a fazer, um pouco por todo o mundo, para enriquecer aquilo que podem vir a construir.
Ao ensinar estão, acima de tudo, a aprender sobre si mesmos. Um pouco como este texto tenta fazer por aqui. Obrigado, Chaves. Para onde quer que seja o vosso próximo passo, jogadores e treinadores que enriqueceram este processo, nunca esqueceremos 2017/18.
Nota: Todas as citações pertencem a Mariano Sigman, no seu livro A Vida Secreta da Mente, uma edição da Temas e Debates. Foto do topo retirada do site Valentes Transmontanos.